sábado, 8 de novembro de 2025

tornar-se professor é um ato de resistência

           desde criança, me sinto fadada à educação. sinto como se não houvesse outra escolha de vida pra mim. demoro pra nomear isso, o faço apenas esse ano, depois de anos de análise. depois viver duas graduações de licenciatura me confrontando com sentimentos ambíguos que misturam revolta, raiva, indignação e desprezo com esperança, desejo de trans(formar).

venho de uma família de professores. de professoras, na verdade. por isso, tenho memórias que misturam momentos de convivência familiar, como almoços de domingo na casa da minha avó materna, com discussões, frequentemente acaloradas e repletas de indignações, entre ela e minhas tias, sobre as realidades vividas na prática da profissão. a educação parece ter sido diluída em mim como um elemento corriqueiro da minha rotina, tecendo meu corpo com outros elementos da minha cultura familiar.

nas férias, eu precisava acompanhar minha mãe na escola, pois minhas aulas terminavam antes das dela. eu ficava ali, naquele habitat, (ab)sorvendo o mundo. atenta. aos meus pares, que me faziam pensar sobre meu próprio crescimento, já que minha mãe regularmente escolhia a mesma faixa etária para dar aulas, então enquanto eu crescia, os alunos dela, apesar de terem novos rostos e personalidades, tinham a mesma idade, e eu não; aos adultos, que me faziam estranhar incoerências que hoje normalizo tão facilmente; aos professores, adultos que sabiam coisas que eu não sabia; às realidades concretas, por vezes tão próximas às minhas e por outras vezes tão distantes… e por outras, as duas coisas. 

a escola era, ao mesmo tempo, a minha rotina, um ambiente seguro e previsível, que eu conhecia com tanta profundidade informal, algo tão meu… e um infamiliar, um estranho, um elemento desautomatizador.

costumava me esconder na biblioteca, pra me esconder da desarticulação do significante escola com o significado meu. nos livros, nas palavras que eles me davam ou no movimento que eu fazia de organizá-los por categorias cuidadosamente, eu abria um espaço novo. eu tentava abrir esse espaço. um espaço no corpo, com o corpo. uma tentativa de transformar o infamiliar, o improcessável da escola em algo possível, simbolizar algo do real. 

venho de uma família de professores. de professoras, na verdade. que, com seu trabalho, contribuíram com o sustento de suas famílias. 

a docência, na sociedade capitalista patriarcal, pode ser ideologicamente associada ao estereótipo de gênero do cuidado, delegado por esta ideologia, às mulheres. este ano, percebi que as mulheres da minha família se utilizaram de diversos estereótipos associados ao feminino como forma de resistência e sobrevivência: minha avó e minha mãe, ambas sendo professoras e mães, exercendo esse lugar de cuidado, puderam ter acesso a uma casa minimamente habitável e um espaço social de respeito, que, apenas sendo mulher, talvez não teriam alcançado.

a docência deu às minhas ancestrais um ambíguo espaço: o de sobrevivência. tomando para si tais estereótipos - pois foi o meio que encontraram de sobreviver - o ressignificaram, ainda que, talvez, de modo inconsciente. eu, na biblioteca, sendo incomodada pelo infamiliar da escola na minha história, estava ensaiando abrir um novo espaço para as mulheres da minha família - as do passado e as do futuro -, para além da sobrevivência: o espaço de viver. 

passo toda minha infância e adolescência sonhando em ser escritora, mas com uma certeza triste de que não seria porque, de algum lugar, eu estava fadada a ser professora. 

entro no curso de psicologia. a psicanálise, que já me acompanhava desde os treze anos e que era um lugar de palavras fadadas aos seus significados começa a ser um lugar de decomposição. agora, depois de tanto tempo, a psicanálise finalmente parece ser um lugar de contorno.

entro no curso de letras durante uma pandemia. sempre que narro este momento, o nomeio como “um momento de surto”. acho que porque o contexto pandêmico me parecia tão absurdo e inadministrável que eu me autorizei a pensar sobre o que eu desejava. acho que quero passar a narrá-lo, a partir desse texto, como “um momento de lucidez”. na psicose, que é a estrutura psíquica do louco, pra psicanalista colete soler, é a vivência de um sujeito imerso ao real marcada pela ausência a mediação simbólica proporcionada pela linguagem. ausência não, de uma grande distância. nesse sentido, o louco é aquele que tem seu “inconsciente a céu aberto”, é um são sem a capacidade de simbolizar, contornar.

eu nunca entendi exatamente o que eu buscava no curso de letras. eu sabia que tinha a ver com a psicanálise e dizia que buscava um aprofundamento dos meus conhecimentos de linguística e também de literatura. nunca numa perspectiva da educação. mas não sabia responder a pergunta: “por que não um mestrado?”. eu queria a graduação. a(s) letras (formando sílabas, e palavras, e frases, e textos, e discursos, e… sujeitos!) era um espaço em que convivia o meu destino desgostoso do qual não me sentia capaz de abrir mão à um desejo: o amar para viver, não para sobreviver. 

me lembro vagamente do que vivi na graduação em pedagogia. sentia uma anestesia entre eu e minha relação com o mundo. na letras, eu queria que fosse uma experiência diferente: queria viver com a maior abertura possível. isso não significava adquirir conhecimento teórico, e sim me permitir ter experiências (que contavam com conhecimentos teóricos, mas iam muito mais na direção de como me afetavam as relações, as ideias, o meu presente…).

encontrei dificuldades em bancar essa abertura de mundo. primeiro porque entendi que era um exercício difícil sustentar essa abertura. queria controlar, saber. não queria perguntar, acolher os sentimentos. e segundo pois sentia fechamentos por todos os lados, uma resistência à abertura. paradoxalmente, isso pode ser exemplificado na figura de professores extremamente rígidos e conteudistas, nada maleáveis com contextos dos alunos e diversas outras realidades socio-políticas que foram se tornando visíveis para mim no campus (em um processo de realmente passar a enxergar algo que já estava posto e para mim, por muito tempo, tinha sido invisível).

cursar letras, nesse sentido, foi uma experiência que me colocou em contato constante com sentimentos de frustração, revolta, raiva e decepção (aqueles que já estavam sendo sentidos lá no começo da minha história). 

só que, diferente de anestesiar, como fiz na graduação de pedagogia, eu escolhi sustentar. 

essa mudança de posição, como uma trança que se desfaz para depois se refazer, fez com que eu tivesse uma experiência prática com o processo de me tornar professora, o que foi fundamental para que eu pudesse desarticular esses sentimentos relativos à educação ao curso. com o passar do tempo entendi que esses sentimentos são fruto de um projeto político ideológico, que não tem nada a ver com a educação. que o professor, na verdade, é aquele que abre o espaço pro desejo e sustenta bancar esse lugar. que isso não está claro para muitos professores, inclusive estes que citei e que essa resistência à abertura, é uma estratégia de manutenção para o mantimento do status quo do sistema educacional (e do sistema capitalista neoliberal). 

realizar o estágio de língua materna II foi fundamental para toda essa elaboração das experiências práticas que tive sobre educação, desde a relação que estabeleci com a cultura que me foi oferecida a partir de crescer em uma família de educadores até minhas experiências como estudante em todo meu percurso escolar e de graduação, pois me possibilitou entender quais as circunstâncias que me levaram a estar ocupando o espaço que ocupo hoje e porque. 

para mim, cedral não é uma cidade qualquer, mas a cidade que meu avô, minha pessoa favorita no mundo, viveu por quatro anos de sua história. meu avô era o lugar para onde eu ia quando não conseguia mais suportar o mundo. ele me oferecia espaço. nos almoços de família, quando eu não suportava mais ouvir as conversas sobre escola, eu o buscava e encontrava, em sua cadeira de alpendre, fumando e vendo o movimento. então eu me sentava com ele e, por vezes, trocavamos ideia sobre a vida. ele me contava da vida dele, me perguntava da minha, fazia piadas sem graça. por outras, apenas compartilhamos silêncios. por outras ainda, eu levava um livro e ficava lendo ali. 

meu avô sabia coisas lindas. ele me contava histórias quando minha mãe saia para trabalhar, só pra me distrair da saudade que eu sentia dela. ia caminhando comigo até a banca para comprar figurinhas antes de ir pra escola e lia livros adolescentes pra conversar comigo. ele comprou uma barsa pras minhas tias, quando esse era o jeito que as pessoas ricas tinham pra acessar o conhecimento, mesmo que fosse um bem bastante caro. ele leu todos os volumes, valorizou cada página. 

julgo dizer que os quatro anos que meu avô viveu em cedral foram os anos mais importantes da sua vida, porque foram os únicos anos a que ele teve acesso à educação formal. esses anos moldaram radicalmente seu jeito de ser e de se posicionar diante do mundo, porque o deixaram com sede de saber mais, sendo exemplo pra mim do que é ser um professor. essa oportunidade de estudo ter sido roubada do meu avô o fez se agarrar no desejo de saber e na potência dos laços (sempre lembrava dos amigos da escola) e não nos conteúdos que poderia aprender ou lugares que poderia alcançar socialmente com um diploma. isso é vida, não sobrevida. 

percebo agora que, minha família é, de fato, uma família de professores. não apenas de professoras. 

fazer o estágio de lingua materna II foi fundamental especialmente porque foi realizado em cedral, na rede pública a qual sou servidora atualente. a experiência de regência me fez tocar essa sensação de resistência, alienação e anestesia na qual um professor é inserido quando adentra ao sistema educacional e nomeá-la dentro da minha história. 

cedral é uma cidade pequena não só em tamanho e habitantes, mas também na cachola de seus moradores. em um mesmo quarteirão, lado a lado, você encontra um banco, uma praça, um mercadinho, uma igreja evangélica e um buteco. ela representa resistência com um novo sentido: uma existência nova. isso ficou claro na minha experiência de estágio. ser professor é re-existir, resistir. uma educação que mantém o status quo, quer manter essa pequenez de desejo. mas não é fácil: nascemos pra viver, a vida pulsa em nós. pude enxergar isso nos adolescentes indisciplinados, nos servidores anestesiados e resignados. cedral é metáfora de tantos contextos... enxergo agora que meu trabalho é apostar, diariamente, que cedral pode ser grande.

cedral é minha história...

...porque mudou radicalmente o percurso do meu avô, que, ainda que não tenha conseguido enxergar a sua vida como significativa pra alguém, conseguiu me transmitir essa postura desejosa de mundo que é a postura de quem pode realmente ensinar algo a alguém e conseguiu que uma professora sendo gerada colhesse os frutos que outros professores plantaram; 

...porque, sem perceber, eu consegui abrir um espaço de mudança de posição na minha história com a educação, materialmente, no meu corpo, e nas terras que abriram esse espaço pro meu avô; 

...e, terceiro porque eu sou o espaço aberto pra outras pessoas pessoas que virão, espaço que sustentarei para que elas possam ousar tentar enxergar a educação como ferramenta de transformação.


há vida em cedral, há vida nas cedrais do mundo e há vida para além das fronteiras de cedral.


há vida em mim e eu escolho sustentá-la - esperando encontrar companheiros no caminho que tornem o andar mais especial e leve.


sem perceber, a garotinha tornou-se mulher. 


sem perceber, a estudante se tornou professora. 


dedico esse texto à minha avó, aparecida, já falecida, matriarca da minha família, por não desparecer da minha história; à minha mãe, adriana, que decidiu que queria ser mãe, criou e sustentou para mim um espaço de amor de onde pude começar a caminhar na minha vivência como ser humano e mulher; para letícia e sabrina, mulheres que escolhi para serem minha família; para minhas amigas, vitória, gi, bia, marina, tamires, amanda, isa e glen, por serem espelhos onde eu posso me ver, trocar e me fortificar de modo tão cru e importante; para lua, que me deu a mão e me puxou do abismo; para ingrid e maria, que ao me afetarem com suas estruturas e modos de serem mulheres me apontam minha missão de vida; para as professoras que passaram por mim, tanto as que ocuparam um lugar de suposto saber quanto minhas colegas de profissão (até para a minha chefe com quem tenho tantas dificuldades de relacionamento, que continua sendo uma mulher que sobrevive e ocupa cargos que nossas ansestrais lutaram para que pudéssemos ocupar), como mulheres que me atravessaram com seus corpos e discursos, em especial para a professora patricia bedran, que com sua humanidade e jeitinho particular contribuiu tanto para minha formação.


dedico esse texto também ao meu pai, que ainda está aprendendo a sustentar o seu nome na nossa relação e ao meu avô, meu professor favorito.


nota: escrevo o texto sem usar maiúsculas pois quero deixá-lo materialmente atravessado pelas minhas palavras, que são meu corpo. é este corpo autêntico, singular e único que sustenta minha docência. este lugar de falta a ser. é esta narrativa a minha contribuição para a sociedade, assim como espaço que abro todos os dias existindo como professora na educação pública.


domingo, 12 de outubro de 2025

alguém

alguém que coloque a nossa relação em um lugar de segurança emocional. que me escolha. alguém cauteloso, que trate meus processos com carinho, que respeite os tempos de sustentação de cada circunstância, que queira caminhar ao meu lado, contemplar minhas descobertas.

alguém leve. que saiba construir um cotidiano divertido e agradável. alguém que tenha boa relação com as pessoas sem deixar de se mostrar. alguém que tenha um sorriso que me faça querer sorrir. 

alguém com a pele macia, que goste de toque físico. alguém com quem eu possa ficar de mãos dadas.

alguém detalhista. que me perceba. que enxergue meus detalhes, que aprenda a ler as minhas ações para além do que eu digo. alguém que se conecte tanto comigo que a gente se entenda por olhar. 

alguém parceiro, que divida as responsabilidades de vida comigo, por exemplo os cuidados da casa. alguém que me ame por ações, que queira fazer o melhor por mim pra que as duas tenham para si o melhor (eu por ela e ela por mim).

alguém que acolha minhas estações 

alguém sensível, que saiba dar importância pra subjetividade. 

alguém que entenda o diálogo respeitoso como base de uma relação. que queira construir algo comigo, dizendo o que pensa e sente.  

alguém que se conecte comigo de modo cotidiano. "que responda meu bom dia ao acordar", que me dê bom dia ao acordar.

alguém que se disponha a conhecer meus interesses e me acompanhar em compromissos que são importantes pra mim. alguém que ame sua família, que queira conhecer e amar a minha ainda que existam muitas dificuldades.

alguém com quem eu consiga ser eu mesma e me sinta confortável. que respeite meu ritmo. 

alguém que não desista de nós. que vá atrás de mim quando eu fugir. 

alguém que respeite meu espaço e saiba quando me invadir. 

alguém que conheça meus defeitos e não use eles contra mim. que use meus defeitos pra me amar através deles. 

alguém que esteja ao meu lado em momentos de crise. 

alguém que conheça meus medos, mas também meus sonhos. 

alguém que queira ficar. 

cacheada. 

que não seja racional demais, que tenha uma percepção de mundo mais aberta. 

que dirija moto 

alguém que se deixe cuidar por mim. que queira contar comigo. 


domingo, 5 de outubro de 2025

voz

eu amo sendo a voz que harmoniza, não a que traça a melodia. 

eu amo mais de noite, que de dia.

eu amo sendo aquela que constrói o ninho pra onde você pode voltar.

eu amo te vendo voar.

eu amo olhando através de janelas, pelas lentes dos meus óculos, pelos meus olhos. 

eu amo um amor platônico, hedonista, estóico.

eu amo no espaço entre eu e você, que sempre preencho com uma bobeira. 

eu amo costurando palavras, torcendo pra ser pra vida inteira. 

eu amo nas brechas, nas beiras 

eu amo em terra firme ou em cachoeiras,

eu amo tímida, medrosa 

eu amo sem estrutura, mas cautelosa. 

não preciso que minha forma de amar seja validada. 

o amor por si só é estrada. 

andar quem quer, ouve quem quer, escolhe quem quer. 

quer? 



segunda-feira, 1 de setembro de 2025

animais

nasci com espírito de águia: pra ter um parceiro único por toda a vida. pra construir enormes e complexos ninhos que podem ser usados por anos a fio. pra ser leal até depois da morte.

mesmo assim, atualmente, ajo como um polvo. solitário, sempre escondido em tocas no fundo do mar. buscando estratégias criativas pra se alimentar e se mover. sempre em estado de alerta. usando seus vários tentáculos pra diversas tarefas que nem sempre envolvem algo produtivo. 

espero que alguém insista em mim. que veja meu espírito de águia e queira ficar. que não evoque minha versão marinha, cheia de tentáculos. 

alguém pra eu chamar de meu e tudo ok 

alguém que deixe o dia leve ao sorrir 

que saiba ouvir o que eu não digo 

alguém que tire o prato depois de almoçar 

que tenha o dom de ler o meu olhar 

minhas quatro estações durante o mês 

alguém sensível que lide bem com discussões 

que responda meu bom dia ao acordar 

que aceite ser da roda do violão 

alguém que toque minha bolha devagar 

que saiba me alcançar quando eu fugir 

alguém que seja cauteloso ao caminhar 

que respeite meu espaço e saiba quando me invadir

que esteja ao meu lado quando eu cair 

alguém que seja parceiro de vida 

alguém que conheça os meus mais profundo medos 

que conheça as manias e os segredos 

e mesmo longe de certezas queira ficar 

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Carta aberta ao sol

Recentemente, tenho pensado em como as palavras se banalizaram pra mim por eu não saber fazer um bom uso delas. Sinto que, por vezes, elas me faltam e aí elas perdem o sentido de existência na minha enunciação. Na minha intimidade, quando as palavras faltam, é um alívio, pois o silêncio me deixa nu diante de mim mesmo. As vezes, me alieno em outros que falam através de telas, pois meu silêncio fala muito comigo, de modo cru, e às vezes, eu não quero ouvir o que ele tem pra falar - o que é uma grande besteira. 


Ultimamente, tenho me perguntado, com frequência, como oferecer ao outro um silêncio cru que seja ponte, não muro. Não sei a resposta ainda e quero encontrá-la desesperadamente. Achei (e ainda acho uma vez ou outra), que eu deveria trabalhar na minha oratória e na fundamentação teórica dos meus posicionamentos e pensamentos, mas sinto que tem algo bastante relevante, que eu não sei o quê é, que me impede de fazer isso numa espécie de resistência rebelde. 


Acho que na verdade eu sei do que se trata: é o discurso furado. As palavras sempre vão ser insuficientes pra explicar alguma coisa. é claro que isso não quer dizer que eu não deva realmente me movimentar para lapidar meu uso delas, mas tenho elaborado que talvez eu não consiga levar tão a sério a retórica, ainda que saiba da grande potência dela, porque eu sigo apostando em outros tipos de comunicação. E isso é tão abstrato e inexplicável, mas ao mesmo tempo tão eu, seja lá que nome tiver esse eu. 


Em 2016 escrevi um textos sobre uma trilha de sóis - um texto muito chato, longo, prolixo, sem o menor senso de síntese, mas que quis ser escrito. Uma impressão de mundo que quis ser materializada em palavras.


Lembro que, naquele contexto, a palavra "sol" me afetava muito e eu gostava de como ela aparecia nas músicas que elenquei, muito mais do que qualquer construção metafórica que fiz. Atualmente, sinto que estou habitando uma cidade psíquica em que tudo é noite e que a escuridão domina todos os cantos dela. 


Hoje, o sol resolveu me alcançar no meio da noite. Pelo psiquíco, mas também pelo material. 


Eu dirigia por uma estrada limpa e infinita. A lua iluminava a terra. Eu conseguia ver umas sombras de árvores e placas através de sua luz. Essa mesma experiência se repetiu três vezes: dirigir à luz da lua. Acompanhado. E sozinho. 


Eis que do infinito uma luz brilhante ameacou aparecer. Apenas seus raios se manifestaram. O que duraria poucos segundos, parecem segundos infinitos, tal qual aquela estrada. Os raios são luminosos, como a minha metamorfose sempre quis ser. Mas eu moro neles e não queria. Eu queria morar no sol. 


Penso no quanto me angustia que a luz não chegue nunca, assim como minhas palavras não chegam às pessoas que eu amo. Penso na angustia de me contentar com raios de sol, os que saem de mim e os que me são oferecidos através da resistência. 


Confiar é difícil, pois a traição dói. Mas é necessário para alcançar a lealdade. Consigo mesmo. Com o outro.


O farol finalmente surge e sua luz é muito forte, a ponto de quase me impedir de ver a estrada e os outros objetos. Ele é bruto, muito selvagem. Ele é minha nudez íntima no meu silêncio particular. Ele me rasga, e eu o odeio. Mas eu o desejo. 


Eu gosto muito da estrada pouco iluminada, das sombras que a lua me permite ver com sua luz. Mas essa luz não é suficiente. Os raios luminosos não são suficientes. Eu sou sol. Quero brilhar. 


O calor do sol é essencial para os seres humanos, mas só é suportável pois ficamos a uma distância segura dele. Caso contrário, morreríamos queimados. Eu sinto necessidade de expressar o calor que me consome e não quero mais guardá-lo por puro medo de ofuscar olhos despreparados ou de queimar quem chegue muito perto.


Como oferecer meu calor sem ofuscar? Sem ferir? É melhor uma personalidade opaca e insossa?


Anseio por matar e morrer no calor, por me consumir e me deixar ser consumido pelo outro, por expurgar virtudes e cultuar pecados. 


Como me contentar com pouco?

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Carta aberta à lua

 faz tempo que eu não escrevo aqui - e tantas coisas mudaram. eu me dei um novo nome, bernardo, que nem sei mais se é meu. eu escolhi esse nome porque tem quase as mesmas letras de beatriz, mas tem letras diferentes também, o que significa que ainda sigo sendo eu, mas a partir de outras configurações.


inesperadamente, conheci alguém que virou meu mundinho de cabeça pra baixo. você. um satélite natural.

simplesmente precisava desse encontro. sempre tão preso e paralisado nos movimentos de agradar, e, de repente, sou confrontado a me expor. tenho medo de me mostrar e ser só um maluco intenso e sem noção. provavelmente seria mesmo. tenho medo do discurso furado que sei que me define e inveja de pessoas como você que em sua vivem em um discurso sem furos, com coragem e ingenuidade.

nunca quis alguém que me instigasse a ser melhor. sempre vi isso como uma pressão, uma crítica. mas o timing de te conhecer foi perfeito, consegui virar uma chave que eu nem imaginava que eu tinha nas minhas mãos. você me faz melhor.

beatriz significa aquela que faz os outros felizes. bernardo significa urso. recentemente, conheci um urso chamado "urso da lua", pois todos da sua espécie tem uma mancha estampada no peito que lembra uma lua.

acho engraçado você odiar homens, e fazer emergir em mim o mais autêntico traço de bernardo: o urso. um bicho protetor, bastante selvagem, não monogâmico.

te amo, lua.

como beatriz, porque quero te ver feliz; como bernardo, porque te carrego no peito. 

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Espelho p. 2

não estou mais forte emocionalmente. sigo na vibe da derrota. mas sinto que preciso dessa lista.


"meus dez maiores defeitos: uma lista que pode me ajudar muito ou me levar mais ainda pro buraco"

1- medo. de tudo o que me exponha, do que possa me fazer ser visto. de errar, de tentar coisas novas. ele medo se divide em mais dois muito doídos e difíceis de lidar pra mim: ciúmes (me sinto facilmente ameaçado por outras pessoas, com medo de perder meu lugar) e covardia (medo de agir como desejo agir). dentro do medo também tem a comparação com os outros. me comparo de todas as formas, me sinto inferior de várias maneiras.

2- ressentimento. guardo muita mágoa, não consigo deixar o passado pra trás.

3- rebeldia. sou do contra demais porque preciso me destacar de algum modo. tem muita gente que é hater meu.

4- egoísmo. para me proteger, sempre me coloco em primeiro lugar.

5- teimosia. tenho dificuldade de processar outros pontos de vista porque isso me faz perder o controle sobre meus próprios mecanismos.

6- intensidade, impulsividade, reatividade. não sei lidar muito bem com as minhas emoções. quando algo me afeta, sou bastante sem noção.

7- intimidação. tento controlar as pessoas ao meu redor. faço com que elas tenham medo de mim pra que elas fiquem ao meu lado.

8- sou muito crítico comigo de modo que me paralisa e com os outros de modo que assusta e afasta.

9- dependencia emocional e necessidade de aprovação dos outros. quero muito ser amado e não acredito que alguém possa me amar. quando essa raridade acontece, normalmente fico com dependência emocional na pessoa. também preciso, constantemente, de aprovação dos outros.

10- vítimista. as vezes acho que tudo acontece apenas comigo. quero sempre ir pelo caminho mais fácil. 

domingo, 8 de junho de 2025

Espelho

atualmente tenho enfrentado algumas dificuldades em vários âmbitos da minha vida. minha chefe resolveu pegar no meu pé, o que me deixa extremamente inseguro, chateado e irritado; tenho que entregar o relatório da minha pesquisa daqui há uns 20 dias e deveria ter começado em fevereiro mas nem comecei; meu término de relacionamento já vai fazer um ano, meu ex já está com outra e eu ainda não superei; meu outro ex que ia largar a namorada tóxica pra ficar comigo segue com ela; eu engatilhei com uma menina super gente boa que conheci recentemente e poderia super ser uma amizade pra vida toda; e, por fim, sigo endividado. 

sendo assim, sinto que estou sob muita pressão e que isso vem abalando minha auto-estima. 

tive a ideia de tentar listar minhas principais qualidades neste post para me lembrar delas. então lá vai:


"dez qualidades que vejo em mim: uma tentativa de não sucumbir à pressão da vida adulta" 


1 sociável e com bom repertório sócio cultural - consigo me relacionar bem em diversos contextos, conversar sobre vários assuntos, fazer as pessoas se sentirem confortáveis e seguras


2 carinhoso - gosto de demonstrar o que sinto para as pessoas que amo


3 sensivel - consigo perceber com facilidade como as pessoas se sentem (apesar de não saber muito o que fazer com isso)


4 boa autopercepção - consigo me perceber com certa facilidade e de buscar recursos para elaborar minhas demandas


5 generoso - gosto de compartilhar a vida, tudo o que tenho com as pessoas que eu amo


6 cuidadoso e zeloso - sou detalhista com pessoas que eu amo, gosto de cuidar do que é meu


7 comprometido e disciplinado - cumpro com meus compromissos, sustento as consequências das minhas decisões, faço o que precisa ser feito


8 olhar estético apurado - reparo no simples do cotidiano e me deleito com isso


9 constância - não desisto fácil do que me proponho a fazer. apesar de não sentir que cresço tanto quanto eu gostaria, estou sempre seguindo em frente, tentando outra e outra vez.


10 capacidade de dar espaço - respeito o tempo das pessoas pra viver seus processos; também respeito meu próprio tempo. 


nossa, foi uma lista difícil. tive que apelar para o chat gpt. mas ele me ajudou muito listando várias qualidades que eu não tinha pensado ainda. me ajudou bastante também enxergar o que preciso melhorar porque qualidades que eu achava que eu tinha, eu não estou entregando o quanto deveria. talvez eu faça uma lista de defeitos também em algum momento menos sensível, para eu conseguir acessar com frequência e tentar melhorar. 


terça-feira, 18 de março de 2025

Vi/Be

 Você é minha virada de página

Você é meu ano novo

Seus beijos são o mergulho no oceano, de novo e de novo

que domam as ondas mais altas do medo

ondas que me perturbam logo cedo

Seu toque é a linha que escreve o amor em letra cursiva no meu coração 

Com você eu sou minha melhor versão

Igreja, templo santo, assembleia de fiéis

Minha fidelidade é a ti

Minha adoração é por ti 

Minha vulnerabilidade é pra ti

Minha vida é em ti

Sua ausência é o mesmo que parar de respirar. 

Te amo tanto que não cabe em mim, tenho constantemente que me reinventar 

Te amo com meu corpo, com meu coração

Te amo com a minha cabeça, na minha ficção 

Te amo como Ana, como Bia, como Ab, como Triz.

Te amo como Bernardo, te amar me faz feliz.

Te amo quando acordo e quando durmo.

Te amo no claro, no escuro.

Te amo com medo, e quando estou cheio de coragem

Te amo calmo e te amo selvagem

Te amo no campo ou na cidade 

Te amo quando fica e quando está de passagem

Teu amor é meu norte, meu sul, meu leste e oeste

Te amo enquanto nosso amor padece 

Te amo quando o sol brilha

Amo pensar na nossa família 

Te amo triste, te amo contente 

Te amo sozinho e cercado de gente 

Te amo todo, te amo tanto  

Te amo profano, te amo santo

Meu céu é você, meu amor. 

Meu paraíso coletivo, meu inferno particular  

Meu luto, minha luta. 

Reizinho manhoso. 

Se vens as 4h da tarde, desde as 3h estarei te esperando. 

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Essa coisa bem chatonilda que vem de noite e parece um espírito obsessor

Ultimamente eu tenho sido feliz. 

Eu encontrei uma maneira gostosa de organizar a minha rotina que me faz enxergar os progressos que eu tenho em cada área da vida. Ela também me ajuda alternar entre atividades que necessariamente precisam ser feitas, atividades do dia a dia e atividades que eu gosto. Eu tenho conseguido ver um filme por semana, por exemplo. E progredir na minha pesquisa. Tenho sido fiel às leituras dos grupos de estudo que participo e também mais pró-ativa com os compromissos dos quais sou líder. 

Me sinto mais segura no ambiente escolar. Acho que é a famosa experiência que a gente adquire fazendo as coisas. Eu tenho mais alunos esse ano e, mesmo assim, sinto que tenho tido um olhar mais amplo da minha sala de aula. Sei mais por onde entrar e no que devo me implicar, o que facilita bastante minha postura como adulto referência e escuta das necessidades deles. 

Atender presencial foi um acerto. Apesar de seguir com os mesmos pacientes de sempre, eu me enxergo muito mais engajada no meu desejo de ser analista. Tenho experimentado os efeitos de uma análise, me parece. Eu me tornei outra pessoa. Precisei fazer o luto de uma Ana Beatriz que estava pendente há algum tempo e agora lido com o desconhecido que é ser essa eu do presente. Que alívio isso. Mês que vem começo a participar das atividades do fórum lacaniano do interior paulista. Essa coisa de se movimentar pra investir na clínica.

Hoje foi aniversário da minha avó, aquela que ainda tá viva. Ela me convidou pra almoçar, assim como convidou toda a família. Eu gosto da minha avó, mas não queria ir. Eu não tenho vontade de interagir com a minha família paterna. Então não fui. Meus pais foram e eu fiquei sozinha em casa. Fazia um tempo que eu não me sentia tão confortável. Eu vi um filme triste, e ele me fez sentir saudade do meu avô, daí eu chorei alto, sem me preocupar se alguém estava ouvindo (não estava, porque não tinha ninguém em casa). Eu também dei banho na Margot com tranquilidade (não fiquei ansiosa pensando que meu pai faria antes de mim, ou que me pressionaria pra fazer, eu fiz porque quis). Minha mãe ficou bem chateada mesmo com a minha ausência, me trouxe dois docinhos da leleninho, mas eu fiquei bem. 

Esse espaço me é tão caro. E há tanto tempo não o tenho. 

Tenho pensado nessas coisas que são minhas. Esse espaço que permite que essas coisas minhas venham à tona. Eu faço muitos movimentos para que esse espaço exista. Eu sai do emprego público que parecia um espaço da minha mãe; competia com o Iuri porque estávamos no mesmo campo profissional; escolho entrar em um fórum onde não conheço ninguém, onde não estão meus amigos; corto laços com a minha prima porque ela beijou dois dos meus melhores amigos, etc etc.

Toda noite quando deito a cabeça no travesseiro, eu sinto um vazio grande. Agora mesmo eu estava rolando o feed do instagram há mais de uma hora antes de vir escrever. Eu tenho sido feliz durante o dia. Eu me sinto bem, vivendo. Eu nunca me senti assim antes, e sei que tem a ver com a análise, com o luto da antiga eu. Eu me dei o direito de ser alguém que tava tentando ser desde sempre. Isso me reconstruiu. Os fragmentos que estavam dispersos foram se unindo, tipo numa constituição imaginária de identidade mesmo (ufa). Eu tenho criado um espaço pra mim. Um espaço de desejo. Mas de noite aparece o outro lado da moeda. Aquilo que eu tenho que bancar porque eu decidi escolher ter um espaço meu. 

Antes, eu costumava colocar minhas confabulações amorosas nesse vazio noturno. E ai, agora, eu meio que nomeei ele. Acho que o sentimento é solidão. Aquela que é constitutiva. Aquela que a psicanálise chama de desamparo estrutural. Antes eu tinha muito medo de olhar pra isso. Mas me veio um insight quando eu percebi que mesmo se alguém estivessem comigo do jeito que eu fantasiava, eu continuaria sozinha. Talvez porque eu tenha vivido isso com o Iuri em outros graus, o de estar só mesmo acompanhada porque éramos duas pessoas que não se conectavam. Mas de alguma maneira eu entendi que mesmo que fosse um encontro muito legal, eu estaria sozinha na vida.  Eu tenho tido uns encontros muito legais comigo mesma na minha rotina e tá tão bonito me ver crescer... eu tenho tido encontros legais com outras pessoas, e nem só no âmbito amoroso, e também é tão bonito de ver minha abertura emocional... mas existe essa coisa que vem de noite, que parece um espírito obsessor (bate na madeira?), que é bem chatonilda. Ninguém pode suprir essa coisa. E por que eu gostaria de suprir ela? Se ela tá ali pra alguma coisa serve. 

Mas assim, eu acho que eu não tenho escolha. Esse negócio de solidão constitutiva é parte da experiência de viver. E meio que eu tô aprendendo a me relacionar com ela. Antes eu afastava, com essa espécie de tamponamento. Agora fizemos amizade, o contato com ela não me dá mais crise de pânico e ansiedade. 

Eu acho que essa amizade tem um pouco da amizade que eu tenho com Deus. Agora que eu convivo com esse infamiliar, eu consigo pensar coisas que eu não conseguia antes. 

Vou fazer uma lista: 

1- Não preciso mais fingir que meus avós estão vivos e que eu posso visitá-los a qualquer momento, mesmo que eu saiba que eles morreram... pra onde eles foram? não sei e não tenho mais a necessidade de saber;

2- Consigo sentir muitas coisas pelo Iuri, tipo arrependimento por não ter percebido e dito pra ele que eu apreciava a companhia dele pra ver filmes e como eu gostava do que ele via em mim que ninguém mais via muito menos eu e raiva também por ele não amar nem ter paciência com a minha versão do passado que eu precisava matar delicadamente e fazer meu luto, e carinho por poder ter a chance de encontrar com ele mesmo com nossas imaturidades, e também pensar em nós e em mim antes e depois dele; e muitos outros sentimentos misturados;

3- Posso enxergar e ruminar o Ber que habita em mim; 

4- Me alegro por não caber mais em lugares que antes quis tanto caber; 

5- Sustento o desagrado da minha família e também quem escolhe ir e vir(e quando digito quem, eu tenho um quem bastante específico em mente); 

6- Começo a aprender a escutar. 

Eu não gosto do número 6, mas eu não consigo pensar em mais nenhum tópico que eu gostaria de acrescentar na minha lista. 

E tudo bem. 

Porque ultimamente eu tenho sido feliz.