quarta-feira, 9 de junho de 2021

Desafio 8


(Uni)verso

Eu não me lembro como a gente se conheceu. Parece que ele sempre esteve presente, porque habita todas as minhas lembranças felizes. Moramos no mesmo prédio, ele era meu vizinho de cima. Sempre ouvi por tabela o rock da madrugada e todas as brigas com a irmã. Quase toda a manhã, durante os anos que a gente ia pra escola, dividimos o mesmo elevador e a mesma van. Ele estava sempre com a cabeça enfiada numa revista em quadrinhos, chupando chiclete de melancia. Eu sabia o sabor porque o cheiro era forte, ocupava o ambiente inteiro. Ele me dava bom dia, com aquela voz de sono engraçada e os cabelos bagunçados. Aposto que nunca penteava. Ele sentava no último banco da van e ia lendo. Nada tirava sua atenção, nem as bolinhas de papel que os meninos jogavam uns nos outros. Na escola, éramos de turmas diferentes, a dele ficava na frente da minha. Eu escolhia a primeira carteira porque dela dava pra ver o canto da sala que ficavam os gibis. Eu precisava ficar prestando bastante atenção para olhar nos momentos certos, mas era certeza que ele viria. No intervalo, vez ou outra ele me dava a vez na fila da cantina. Por causa dele, às vezes eu conseguia pegar o picolé de groselha. A gente andava de bicicleta na mesma turma e brincava de mamãe da rua.
Quando me mudei, senti saudade. Era como se meu universo perdesse um pouco a disposição de funcionar. Nisso, ganhei meu violão. Foi a sorte. Comecei a tocar rock. Mas só os títulos tristes. E o nome dele ficou gravado em mim.
Cris. 

(In)verso

Quando eu penso no Cris, um dos pensamentos que me vem com frequência a cabeça é de como seria se eu não tivesse me mudado. A gente teria se aproximado? A gente teria crescido na mesma sintonia? A gente teria vivido uma história de amor? Sempre tive essa mania boba de me perder no "e se", como se existisse uma história secreta atrás de uma porta que não pude acessar. A história que existe eu não conheço, não faço parte dela. E é sempre por essas tantas que me pergunto como ele está.
Imagino muitas suas versões, uma mais surpreendente, outra mais diplomática... mas todas com o mesmo gostinho amargo de impossibilidade nas possibilidades. A minha favorita, claro, é aquela que o hobbie de leitura virou paixão e meta de vida: Cris como universitário em curso de artes, desenvolvendo um projeto alternativo de quadrinhos. Gosto de imaginá-lo morando sozinho, mas sempre recebendo os amigos em casa, com um gato gordo e peludo, meias espalhadas pelo chão do quarto e melancia na geladeira. Talvez duas ou três plantinhas na sacada, pra fazer companhia pra sua criatividade noturna.
Eu me pergunto se ele pensa em mim como penso nele.. ou de alguma outra forma. Se ele também sente a inocência e nostalgia que eu sinto ao lembrar do seu rosto, do seu cheiro e do seu sorriso. 

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