sexta-feira, 28 de maio de 2021

Do outro lado de WonderLand

Demorou um tempo até que o autor percebesse do que realmente se tratava aquela história. Ele estava completamente por fora. Por anos. E era o único que não percebia. Assim como não é possível entrar luz em um quarto escuro quando uma janela não está aberta ou quando o interruptor está virado para o lado errado, não é possível enxergar qualquer coisa se não usamos nossos olhos, ainda que o sol esteja muito brilhante no topo do céu. 

Esse narrador em questão, narrava de olhos fechados. Quando estamos de olhos fechados, a gente sempre, sempre acha que o escuro é a única possibilidade. Mas nosso corpo reage, ele sente luz... e bem lá no fundo, ainda que a gente não veja, a gente sabe que não é só isso.. e sabe que podemos abrir os olhos. A menina que admirava Alice, no fundo sabia que o Chapeleiro a observava... ora fingia que não, ora realmente imergia na fantasia de que não sabia... mas nada podia mudar os fatos. 

Não foi apenas a perpectiva do autor sobre aquela história que se transformou e nos trouxe até aqui. Na verdade, o mérito é coletivo, de todos os personagens, juntos. Não dá pra saber de verdade quem deu o primeiro passo, mas há um palpite que ele tenha surgido do Chapeleiro. Porque a história inteira só é narrada quando ele decide olhar para a menina..., ainda que camuflada em cores preferidas, camisetas listradas, guarda-chuvas de precaução... e olhá-la a partir de seu olhar. 

Deveria ter começado pela quase Alice, eu suponho. Se ali tivesse começado, talvez não existisse Chapeleiro ou autor... mas não foi possível. Era preciso um olhar que viesse de fora para dentro... talvez dois olhares, pensando melhor... e a quase Alice não sabia ser esse olhar que se via por inteiro para então ver o que estava fora. 

Mas sua rotina mudou... e a convidou a mudar junto. Pela milhonésima vez. A vida sempre a convidava, mas ela rejeitava, porque era um convite do sol, que a tocava, mas que ela não via. Ela tinha medo, medo de aceitar o convite e de... se quebrar. Em vários pedacinhos. Mais pedacinhos? Ela já tinha vários... tentava colar um no outro, sem sucesso. E não entendia que o convite era um remédio, não um veneno. 

Até que se viu dentro da proposta. Não se lembra de ter aceitado nada, só se viu ali. Se sentiu empurrada... mas um empurrão necessário, não invasivo. O empurrão do Chapeleiro que a observava. E do autor. Mas o Chapeleiro tinha mais propriedade de olhar, apesar do autor ter mais lugar de fala. A vida, com sua docilidade, foi lhe propondo que, de suas estruturas provenientes de cacos colados, se fizesse uma massa flúida e homogênea, como vários cubos de gelo que derretem ao serem retirados da geladeira. Se tornam um. A vida parece cruel, mas não é. O que chama pra morte, é uma mera tentativa de homeostase e o que chama pra vida é falta. Quando ela viu que podia endurecer de modo indestrutível e se desfazer para alcançar novos lugares, sem deixar de ser água, a quase Alice abriu os olhos. 

Então o autor descobriu seu segredo. Não era que ela não enxergasse o Chapeleiro, ela tinha medo de perceber que havia alguém que a observava, a contemplava. O Chapeleiro sabia, mas ele estava no futuro, então não era um problema para os participantes do presente. Mas pro autor foi um grande impacto. A quase Alice tinha medo de se surpreender com seu Chapeleiro... ainda que soubesse o quanto essa ideia era incoerente, já que o elemento surpresa precisa do desconhecido, e ela achava já saber de tudo do que ele via... será? Será que ela não se espantaria com a profunda beleza que o Chapeleiro via nela? Com seus mais minunciosos detalhes, suas manias, sua verdade... a intimidade de suas entranhas? Será que não era difícil aceitar essa beleza do outro? Será que ela não desejava ardentemente por isso? Era melhor que não visse, porque se entendesse o quanto era valorosa para si mesma, não suportaria a dor de não estar nesse lugar para os outros...

O que nós transporta diretamente para o problema de Wonderland. Seu Wonderland, seu lugar preferido no mundo, seu HeadSpace. Por lá a quase Alice se encantava com a selvageria da folhagem, com o ofuscamento das muitas cores, com as trepadeiras entrelaçadas que, em sua confusão, delimitavam um caminho de tijolos... ela caminhava, pacientemente, colocando um pé depois do outro, sempre pelo mesmo caminho... em dias de sol, em dias de chuva... ela tinha carinho pelo seu lugar... e, por mais que sentisse cansaço, não deixava de caminhar, de ir além da guarita do condomínio ou da catraca da faculdade que estavam em lados opostos de Wonderland, trilhando o caminho dia após dia. O caminho encantava... e sempre havia mais e mais para explorar e descobrir.

Conforme a quase Alice ia sendo derretida, Worderland se distorcia... não! Na verdade ele deixava de ser distorcido, mas para ela era o movimento inverso porque era esquisito.. e dessa contra distorção, Wonderland se aprofundava... parecia que se expandia em qualidade, ainda que simplesmente não crescesse ou diminuisse. Tinha bebido a garrafa do beba-me e comido o bolinho do coma-me e tinha mudado. Mas ao mesmo tempo era exatamente o mesmo lugar. 

A menina continuava brincando de ouvir, principalmente o vento. Ele a chamava a voar sem tirar os pés do chão. Ouvir agora era sua profissão, e a cada dia se sentia mais refinada no ofício. A vida dizia: olha, agora você já dirige, tem seu carro, seu próprio rumo... mas ela discordava. Ainda andava a pé. Estava longe de dirigir alguma coisa.. quanto mais ouvia, mais se distanciava da pretenção de motorista que parecia tão necessária para alguém que não sabia quem. 

Um dia, indistinguido entre vários outros, ao caminhar por Wonderland, a menina viu um gato. Ele espantosamente circundou o limite do muro e sumiu de suas vistas. A quase Alice se assustou... nunca tinha pensado sobre as bordas de Wonderland. Teria um avesso? Não sabia, mas, de súbito, quis descobrir. Se o gato podia, como ela não poderia? E correu até onde o tinha avistado pela última vez. 

O muro era longo, em todas as suas dimensões. Ela correu por muito tempo. Por uns dois anos quase, pelas contas do autor. Enquanto corria, via o clima mudar, os sapatos se gastarem e as flores florescendo, cada uma no seu tempo... todas com a mesma capacidade de deixar sua identidade e presença na natureza de algum modo... ela via muitas coisas.. e estava sempre sorrindo enquanto via... via várias Alices que não eram ela e que ela não era... a sua nutricionista, sua filha imaginária, a personagem do seu livro que nunca começou a ser escrito, a atual do grande amor da sua vida... e, quase sufocada pelo ar gelado que entrava pelas narinas e descia pelos pulmões... a do país das maravilhas.

Quando parou, estava inerte. O muro não tinha acabado, mas ela sabia que a parada era ali. Bem no meio do nada havia uma árvore e vários pequenos montinhos de tulipas azuis e alaranjadas. Essas flores não tinham certezas e não a deixavam inquieta... todas existiam sem ser nada, sem nem mesmo serem flores, e era o não ser que as faziam tão lindas e chamativas... ao redor delas tinha um milhão de borboletas que voavam entregues e tranquilas, e ela podia sentir cheiro de amor... aquele cheiro de abraço apertado, de café com negresco, de água salgada, de melodia. 

Chegou perto da árvore. Notou que as pétalas dessas flores não grudavam nos pés, elas encostavam e desencostavam, suavimente em seu corpo, quase que lhe fazendo um carinho. E, bem debaixo da árvore, ela viu estendida uma toalha... uma toalha de piquenique. Era listrada, como a maior parte das suas blusas, só que era também muito colorida... o amor era colorido daquele jeito. E dava a impressão de que as listras eram portas, não somente listras... portas elásticas, que ela podia abrir, entrar experimentar e sair. Ela notou que também era uma grande porta, mas sem listras, multicolorida. Suas cores dançavam caotica e ordenadamente pelo seu corpo, misturando-se e permanecendo individuais, como uma grande festa. E conforme dançavam seu corpo ia se energizando, brilhando, brilhando, brilhando... um brilho extremamente forte e reluzente, que se apoiava em seus olhos abertos. Ali se deu conta de que estava do outro lado de Wonderland. 

No avesso de Wonderland. 

E se deu conta de que não havia avessos. 

Um grande som ecoou no céu. Era um som de guitarra combinado com gritos. Pouco a pouco, como um se um pincel mágico varresse o cenário, tudo foi se tornando verde musgo. E agressivo. Começou a chover, primeiro pingos brandos, mas rapidamente uma tempestade. Com raios e tudo o que tinha direito mais. Ao mesmo tempo, começou a nevar. Algumas gotas desciam brancas e pastosas, outras sólidas, em pequenos cubos de gelo e outras em água. Todas em diversas espectros de verde musgo.  Ela ainda brilhava, só que agora era um brilho sombrio. Era ela, mais do que nunca, no seu mais verdadeiro estado de existência de não ser. Do meio da luz, contemplava seu segredo. Quanto mais selvagem e molhado, mais belo. Ela amava aquilo tudo, sua alma engaiolada, agora vomitada, trépida e translúcida. Era uma honra e um prazer se ver. 

De uma poça de água, viu seu reflexo. Sorriu, pois não era a si mesma que via, era a imagem de uma garota de chapéu. Uma garota que também sorria e que sorria um sorriso seu. Ela começou a contemplar seus detalhes... seus olhos castanhos e ternos e mãos fofinhas, o cabelo escorrido, os peitos fartos, a papada.. as estrias eram brechas para o interno, e através dela pôde tocar suas dores e memórias, suas perspectivas e ideais, sua intensidade e sua bondade. O mais bonito, notou Alice, eram sua transparência na poça que foi dispersando, disperçando e disperçando... pelas lágrimas quentes que Alice sentia cair nas bochechas.. até que desapareceu completamente. 

Piscou. Tudo sumiu, Alice só via o gato. E ele a via também. Estava sentada, com as mãos sujas de terra, apoiada na sarjeta da rua de sua casa. Wonderland não era mais só seu. Não era mais seu segredo.  Havia um gato. Isso a emocionava. Meio que entendeu que nunca quis que fosse segredo. Existem 2 motivos pelos quais alguém guarda segredo de algo: 

1) Não querer que alguém descubra 

2) Não ser algo relevante o suficiente para se contar. 

Aquele gato a fazia sentir que suas postulações não importavam. Agora ela meio que queria que não fosse segredo. Então pensou: "Havia alguém me olhando... alguém como esse gato. Alguém me olhava quando eu mesma não podia... alguém com um chapéu engraçado. Esse olhar me salvou".

E sentiu uma profunda paz. 

(De Ana Beatriz para Bia, Ana, Ab e Triz)

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