quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Almas #1

Capitulo um

"Entre, fique a vontade. Estou feliz que tenha vindo"
"Só um de nós está feliz, então"
"Seu nome é Pietra, certo? Conversei com a sua mãe e ela me disse que tem passado por dificuldades de adaptação no novo colégio"
"Não tenho mais mãe. E também não gosto de ser assunto nas rodas de conversa entre estranhos"
"A mulher na sala de espera me pareceu muito convicta de que era sua mãe"
"Talvez um dia tenha sido"
"Não é mais?"
"Não"
"Por que?"
"Se ela pode tomar decisões a respeito de mim sem ao menos me consultar, então eu também posso fazer o mesmo a respeito dela sem consultá-la. Sendo assim, ela não existe mais".
"Faz sentido. E quanto ao seu pai?"
"O que tem ele?"
"Ele ainda existe para você?"
"Ela te disse isso também?"
"Disse o que?"
Pausa.
"Gosto do seu cabelo"
"Bom pra você"
"Faz tempo que pintou?"
"Não finja que se importa"
"Eu me importo"
"Porque é seu trabalho e te pagam bem"
“Isso não é verdade, Pietra”
“Não acredito”
"Eu vou provar, se você deixar”
“Duvido”
“Quanto tempo?"
"Eu não sei quanto tempo, ta legal? Acho que não muito, mas parece uma eternidade”
"Uma eternidade?"
“É”
“E por que não muito tempo pareceria uma eternidade? ”
"Porque foi um pouco antes... ”
“Antes? ”
“Antes da Vitória..."
“Antes da Vitória o que, Pietra?”
Pausa.
"Quem era a Vitória?"
"Minha mãe também não disse isso?"
"Achei que não tivesse mãe"
Pausa.
"Vitória era uma amiga"
“Era?”
Pausa.
"Que tipo de amiga?"
"Existem tipos de amigos? Está rotulando?"
"Não, claro que não. Desculpe. Quis perguntar se eram próximas"
"É. A gente era próxima. Próximas pra caralho"
Lágrimas.
“E não são mais? ”
Pausa.
“Não”
Pausa.
“Por quê?”
Pausa.
"Por causa daquela merda… aquela… merda…"
Pausa.
"Sente falta dela?"
"Fala sério”
"Sente falta dela?"
"Sim”
"Estudaram no mesmo colégio?"
"Sim”
“Na mesma turma?”
“Isso é um interrogatório? Não sei aonde quer chegar, mas não quero mais falar nada"
"Peço desculpas se me excedi"
Pausa longa.
"Sabe, o silêncio é meio constrangedor, às vezes, mas muito revelador. Quando eu era menor, tinha sempre que..."
"Eu não to nem ai pra quando você era menor"
Pausa.
"Gosta de música?"
"Não"
"Como não?"
"Não gosto"
“Não acredito”
“Problema seu”
"Quer procurar alguma musica da sua banda favorita na internet e colocar para tocar?"
"Não"
"Qual seu tipo de música favorito?"
"Você é surdo?"
"Prefere ouvir música ou continuar o bate-papo?"
"Canção pra não voltar, A Banda Mais Bonita da Cidade"
“Como eu pensei”

Ficamos rodando o quarteirão repetidas vezes e não encontramos lugar próximo. Minha mãe me olhava pelo retrovisor de minuto a minuto, com aquele mesmo olhar de pena – um olhar vertical e superficial. Era um saco. Tudo o que parecia importar para ela era o fato de que talvez não conseguíssemos chegar a tempo da benção do padre. Eu, sinceramente, não esperava que chegássemos. Queria que o padre se fodesse. Tão pouco queria vê-la. Não assim. Estacionamos o carro depois de quase vinte minutos, dois quarteirões para trás.
Eu nunca havia ido a um lugar como aquele, então não sabia direito como agir. Meu único parente morto havia partido há muito tempo e eu não tinha memórias suficientes a respeito. Na verdade, não tinha lembranças nem mesmo de sua vida na minha. Logo, quando entrei no salão, a morbidez fez o nó na minha garganta aumentar infinitamente. Nunca tinha sentido algo parecido. O coração pesado, as lágrimas que não escorriam pelas bochechas, a sensação de que o tempo havia parado. Além do mais, me sentia mal por vestir preto. Por todo mundo vestir preto.
Realmente, estávamos atrasadas. Minha mãe ficou envergonhada quando tivemos que nos acomodar sorrateiramente atrás do arranjo de flores que o colégio havia enviado para demonstrar seus sentimentos. Eu enxergava pouca coisa mais que vultos de rostos. Desconhecidos. Provavelmente a família materna que morava longe, que eu não tinha contato. Não via muita gente. Apesar disso, os rostos nos miravam julgadores. O padre benzia, embalava, preparava-a para a vida eterna enquanto pingava água por todo lado com aquela varinha de metal. Enquanto eu observava, pensava o que minha amiga estaria pensando se os vissem na simbólica cerimônia. Vitória nem ao menos se considerava católica.
Tínhamos alguns minutos antes do caixão ser fechado pela ultima vez. Eu não sabia exatamente se queria me aproximar. Gostava de como ela estava viva na minha cabeça – e talvez esperasse que, se não a visse no caixão, ela ficasse viva para sempre. Talvez ela apenas estivesse dormindo um sono profundo, como na história da Branca de Neve. Minha mãe, que tinha insistido para que fôssemos o quanto antes ao velório, agora insistia do mesmo jeito para que eu me aproximasse do caixão e a visse. Tocava o meu ombro levemente, como se me empurrasse em direção a um abismo. Um abismo que eu não tinha ideia de como era profundo.
Fui caminhando. Aproximava-me rápido – as pessoas não pareciam ficar muito tempo em sua presença. O cheio de flores e incenso me davam náuseas, achei que ia vomitar. Mesmo que estivesse cada vez mais perto, para mim, cada passo meu era um passo que nos afastava. Eu, carne e osso, ela, pó. Estendida naquela caixa de madeira, Vitória sorria. Meu estômago embrulhou. Seu sorriso era a única coisa ali que ainda era dela.
 Pálida como um fantasma. Sem brilho, sem cor, sem luz. Aquela não era minha melhor amiga. Não era só a morte. Tinham transformado-a, como sempre haviam desejado. Maquiagem fraca, unhas com esmalte claro. Seus cílios estavam baixos, usava uma tiara brilhante e um terço nas mãos. No corpo, o vestido salmão que tinha ganhado da avó no ultimo natal – e que não tinha saído do fundo do armário uma só vez. Sapatilha dourada, com detalhes floridos que combinavam com as meias. Senti raiva. Vitória não era assim – e parecia que eu era a única ali a saber. Preferia calças a vestidos. Usava os cabelos soltos, tênis de cano alto e coletes. Vestia xadrez, não flores. Seus olhos eram carregados e marcados pela maquiagem forte. Detestava dourado. Pintava a unha com cores fortes, achava tiara coisa de gente velha. Carregava uma corrente de Buda na mochila, não um terço. Definitivamente, não era a Vitória que eu conhecia. Não era a Vitória real. Não era a minha Vitória.
Entretanto, talvez fosse a que eles conheciam.
Estava tudo errado, do avesso. Eu sabia – e era única. Raiva. Impotência. Eles não queriam ver o que ela sempre quis mostrar. Não quiseram amar o que ela era – haviam amado uma mentira. Nem morta, nem morta! Aperto no peito, as lágrimas descendo descontroladas. Ela estava morta então. Ela estava morta? Estava. Morta. Senti o abraço quente da minha mãe a me acolher. Recostei minha cabeça em seu peito. Senti-a me levando para longe. Queria sumir. Eles não entendiam. Não entendiam. Não era isso o que ela queria. Não era ela! Não era! Eles me pareciam muito mais mortos, apesar de se acreditarem vivos. Mortos em sua própria existência hipócrita e insignificante. Vitória tinha estado viva, tinha sido ela mesma, tinha enfrentado sozinha.
Pra que?
Para ser eternizada como uma pessoa que não existiu?
Por que ela teve que morrer? Depois de tudo!
Não era justo com a luta dela!

A Vitória do caixão era a Vitória que eles queriam que ela fosse.

3 comentários:

  1. Bia (da faculdade, com preguiça de logar rsrs)17 de janeiro de 2016 às 21:46

    Cara, que TEXTO. Se tivesse terminado na última frase da conversa com a psicóloga (como eu imaginei que aconteceria, por um instante), já teria massa, mas aí continuou. Eu fiquei bastante comovida com os dois últimos parágrafos em especial. Senti a angústia da protagonista, mas fiquei mal sobretudo pela Vitória.

    "Mesmo que estivesse cada vez mais perto, para mim, cada passo meu era um passo que nos afastava. Eu, carne e osso, ela, pó."
    "Tinham transformado-a, como sempre haviam desejado."

    Nossa, o penúltimo parágrafo todo pra mim foi o mais impactante. A Vitória nos é apresentada com uma sucessão de fatos sobre o que não foi a Vitória, que era o que parecia gritar aos olhos da Pietra.

    "Não era a Vitória real. Não era a minha Vitória.

    Entretanto, talvez fosse a que eles conheciam."

    "Eles não queriam ver o que ela sempre quis mostrar. Não quiseram amar o que ela era"

    "Eles me pareciam muito mais mortos"

    De se fazer refletir muito, realmente. E a maturidade da sua escrita, principalmente depois de ter lido alguns dos seus escritos da adolescência, também ficou muito evidente! Já quero muito ler o resto da história ou qualquer outra coisa que vc escrever! É tão bom ter amigos escritores <3

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  2. Eba!!! Que bom que você gostou! A Pietra é uma personagem muuuuito importante pra mim!!!

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  3. Ps "Bia, da faculdade, com preguiça de logar" UAHSUAHSUAHSUAHSUHASUHASUHAUSHAUSH <3

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