domingo, 7 de fevereiro de 2016

Era uma vez, Pandora - Aventuras de Hugo #1

ATENÇÃO! As palavras que seguem são extremamente confidenciais.
Era uma vez, Pandora…
Uma história sobre um sangue azul desviado.

Era uma tarde quente que se instaurava em Pandora naquele dia 23. Nada de ventos ou brisas, apenas um sol latente sorrindo no topo do céu. O vilarejo das misturas, observado pelo personagem principal desta história, estava vazio. Era um daqueles dias tão quentes que nenhum indivíduo se arriscava a colocar o pé para fora de sua habitação. Nem mesmo as crianças alaranjadas que tinham uma real e imponente resistência à sensação de calor. Entretanto, Hugo tinha uma queda por certos contrários que ninguém realmente entendia. Talvez porque ninguém nunca havia tentado. Ou porque era um pouco fora dos eixos mesmo. Tentar desenvolver novas práticas e compartilhá-las com seus semelhantes não era um costume comum em Pandora. E se não ocorria nem entre semelhantes, não havia de ocorrer puros e misturas. Práticas novas eram vistas com maus olhos socialmente, e quanto mais havia envolvimento das classes, mais separadas as classes ficavam. Hugo se acomodara embaixo de um velho carvalho, poucos metros do vilarejo que observava. Seus pensamentos pairavam em forma de palavras pelo ar, em volta de sua cabeça. Estava lá há algumas horas, junto de seu bloco de notas e sua pena. Às vezes rabiscava qualquer coisa. Aquele era, aparentemente, o único lugar fresco da redondeza. Observava casas ora púrpura ora verdes ora alaranjadas. Às vezes pensava que não deveria ter nascido azul, mas de qualquer outra cor misturada. Arriscava dizer até que seu destino deveria ser todo escrito em preto, uma das três cores proibidas. A verdade é que a cor em si pouco importava, mas pelo menos assim, ninguém lhe lançaria olhares frios e julgadores. Ou talvez estivesse enganado. Caso fosse de outra cor, talvez os olhares desse tipo viessem do influente povo puro ‒ a quem, pelo menos, não chamaria de família.
Intitulados Puros, Azuis, Amarelos e Vermelhos dificilmente interagiam. Desde pequeno, Hugo havia sido instruído sobre a importância e a magnitude das cores puras, os três poderes divididos igualitariamente entre os governantes Henrique Anil, Estevão Luz e Rosa Maria e as habilidades de cada povo. As Escolas Puras, erroneamente, eram locais que apenas aceitavam alunos de suas devidas cores. Amarelos nas Escolas Amarelas, Azuis nas Escolas Azuis e Vermelhos nas Escolas Vermelhas. Cada colégio era revestido de paredes e portas com suas devidas cores. As salas eram muito bem cotadas de indivíduos da mesma cor. Também era assim nos refeitórios e salas extras. Alguns alunos, como nosso próprio personagem principal, apesar de discorrerem tranquilamente a respeito de sua cor inata, mal conheciam outras cores além de sua própria. E aos professores, mestres, pensadores e intelectuais, tal fato era visto como motivo de honra e orgulho.
Tons de Verde, Roxo e Alaranjado tinham seus próprios monumentos, mesmo que um pouco mais precários. Entretanto, o contato entre os indivíduos existia. Era ocorrente. As crianças do vilarejo eram criadas no mesmo ambiente, com as mesmas regras e tradições. Conheciam outras cores de experimentações diárias de convivência, não apenas de aulas teóricas. Ainda que diferentes e com suas próprias realidades, viviam em harmonia.
Já as misturas mais misturadas, não tinham instituições próprias - muito menos qualificadas, apesar de lhes ser direito legítimo. O que faziam era se reunir perto do rio, às vezes, para cantar e dançar. Eram conhecidos como "nômades do hoje" pelo povo do vilarejo das meias-misturas, porque viviam com o pouco que tinham, um dia de cada vez. Pelos puros, eram conhecidos como "Cascas de Pão": a parte do pão que está lá, mas que todos jogam fora. Hugo, em sua inocência, não entendia porque falavam de pão de uma forma tão grosseira. Ele gostava da casca. Aliás, ele gostava do pão por inteiro.Sobre as cores proibidas... bom, por hora deixemo-las.
Nos primeiros dias de colégio, Hugo aprendera na pele a respeito de hierarquia. Não sabia por que todos o miravam e esperavam que ele fizesse isto ou aquilo bem. Sabia que sua mãe o preparara todas as manhãs assim como havia feito por longos anos com seus irmãos, e presumira que assim também era feito nas outras casas. Portanto, não conseguia compreender porque era tratado com tanta diferença. Demorou algum tempo para o pequeno Hugo assimilar que nem todos eram príncipes como ele e seus irmãos, apesar de levarem o sangue azul. Aliás, esta parecia ser a única semelhança dele com os irmãos, o mesmo sangue correndo pelas veias. Todos da turma olhavam para Hugo com olhares fortes e cortantes. Ele sabia que falavam dele quando não estava perto ‒ alguns mesmo quando estava por perto. Não eram coisas boas. Muitos debochavam dele e o maltratavam. Hugo também era alvo de desprezo dos professores. O menino pensava demais, perguntava demais e agia de tal modo que suas ideias não faziam jus a idade que tinha. Por isso, vivia uma grande dificuldade no conjunto de matérias intitulado "Singularidades Azuloides". Não conseguia processar conceitos que, para os outros, eram simples. Ninguém queria estar perto de alguém tão esquisito e diferente. Ainda mais se esse alguém tivesse tudo o que todas as pessoas gostariam de ter e não fosse o que deveria ser. Diferentemente dos irmãos, Hugo não tinha uma multidão de amigos e não era o exemplo da turma para os mestres. Por longos anos, viveu angustiado. Naquele dia 23, não se sentia mais do mesmo jeito. Pelo menos, não pelos mesmos motivos de antes. Era ótimo ter deixado àquela fase confusa para trás. Entretanto, o tempo havia trazido-lhe outras questões. Folhas secas do velho carvalho se chocavam contra seu corpo. É o ar quente se transformando em brisa, assim como foi o próprio Hugo ao decorrer dos dias, meses e anos de sua vida, traçando um caminho degradê. Antes, de um azul escuro, quase negro. Agora, de um azul fraco, quase transparente. O azul tão belo que aprendera na escola tinha nele um tom de uma dolorosa cor descolorida. Rabiscava algumas rimas enquanto contemplava a presença do silêncio ao seu redor.
De súbito, ergueu seu olhar. Algo apitava dentro de si mesmo, como uma sirene nuclear. Era o seu coração avisando que alguém estava a caminho. Não estava errado. Nunca se pode estar errado se segue o próprio coração. Ao longe, bem ao longe, avista uma garota de pele violeta. Seus cabelos estão presos em um elástico forte e caem sobre os ombros. A menina usa um macacão escuro, aparentemente de tecido grosseiro. Envolta em seu corpo, carrega a mochila lilás. A mochila das cartas. Seus olhos mesclados de azul e violeta prendem o príncipe até que esta venha ao seu encontro.
“Olá Lordezinho.” murmura Bea. Sua voz é macia como veludo e ecoa intensamente dentro da cabeça de Hugo. “Pensei mesmo que o encontraria aqui. Bela capa”. Hugo se esforça para sua respiração parecer normal, porém está ofegante. Dera mesmo uma melhorada em seu disfarce durante as ultimas madrugadas. Sua mãe andava desconfiando de algo estranho, mas não se importava de correr o perigo. Nada importava muito quando comparado a importância de sua liberdade. E a importância de todas as outras cores. E isso podia compartilhar com Bea.
Logo veio a sua cabeça o dia que se conheceram.
Apesar de não mais saber exatamente se se considerava um príncipe ‒ ou se esse título era o que gostaria de ter ‒, ainda tinha suas obrigações reais. Aniversários, convenções, inaugurações.  Até os treze anos, Hugo deu o melhor de si para ser o que queriam que ele fosse: o Lorde mais novo. Entretanto, cada minuto dentro do castelo era uma tortura. Em um desses eventos, devido à sua abençoada distração e a seu teimoso cavalo Azulão, Hugo conheceu parte do vilarejo das meias-misturas. O menino não reparou quando Azulão resolveu desviar-se do caminho que guiado por um de seus irmãos. Esse foi o mais maravilhoso erro de toda a vida de Hugo.
A princípio, assim que viu-se perdido, preocupou-se bastante. Mesmo que tivesse em mente que os soldados Azuis logo notariam sua falta e viriam buscá-lo, Hugo não conseguiu sentir-se tranquilo. Sendo assim, deixou com que o cavalo conduzisse a jornada sem rumo ou destino. 
Avistou de longe o vilarejo, deu-se conta no que estava metido. Todavia, ao invés de sentir medo, sentiu-se extasiado. "Caramba" pensou. Tudo era novidade aos olhos do menino. As pessoas, os animais, as casas e as luzes. Estava encantado. Apesar de expostos o verde e o alaranjado, a cor que mais lhe chamou atenção foi o lilás. Ainda que nas lendas azulescas dos Puros essa cor fosse comparada em alguns momentos a cor mais próxima da seu sangue, para ele ambas eram totalmente diferentes. Azul aos olhos de Hugo parecia uma cor triste, sem vida. Já o lilás era uma cor forte, viva, doce. Era suave e ao mesmo tempo intensa. Não conseguia compará-la com nada do que havia visto antes, porque nunca havia visto nada tão maravilhoso.
O mais lindo, era aquela mistura. Olhava as pessoas, seus diversos tons e sentia como se estivesse vivendo a melhor experiência de sua vida. Mas ainda que usasse os olhos, não via apenas com eles. Via com os olhos de dentro, os olhos da alma. Aquilo mexia tanto com seu interior que por alguns instantes, percebeu-se sem palavras. Seu coração ardia, parecia pegar fogo de tão quente. Hugo não se sentia mais torturado por todo aquele soberbo povo azul. Havia crianças coloridas de mãos dadas! Brincando juntas! Lembrou-se da aula de Segurança das Cores. Percebeu por si mesmo o porquê não conseguia acompanhá-las. Ocorreu-lhe de supetão que ele não era e nunca seria como seus professores, governantes e colegas, por mais que se empenhasse. E o mais incrível, foi o sentimento forte de que lhe veio em seguida: não queria mais ser como eles. Viveu uma experiência aconchegante: talvez, ele não fosse tão diferente. Talvez ali existissem pessoas como ele. 
Sentiu todo seu rosto molhado, seguido por sua camiseta. Era o corpo externando aquele turbilhão de sentimentos. Por mais que tentasse conter as lágrimas, outras e outras rolavam por sua face. E o menino sorria enquanto chorava, em estado de contemplação .
“Tu não deverias estar ai.” Ouviu uma voz murmurar. Era a voz mais linda que Hugo já havia ouvido em toda a vida. A menina como um todo era linda. Seus cabelos ondulados, sua boca, seus olhos… principalmente os olhos. A diferença entre seus olhos o encantou. “Tu não sabes falar, sangue puro?”
É, realmente Hugo parecia ter desaprendido a falar. Sua pulsação tinha acelerado e o garoto sentia seu corpo responder ao nervosismo através de suor.
“Desculpe-me” gagueja. Seus olhos continuam muito molhados e Hugo tem muito medo. “Eu não deveria… eu não sei… estou perdido!”
A garota o mira desconfiada. Hugo não consegue parar de analisar seus olhos. Metade de ambos são azuis. A outra metade, púrpura. Ela nota. Ele prende a respiração.
“É de nascença”. Diz, retirando-se da defensiva. A noite vem chegando e Hugo percebe que também o céu tem um tom diferente do que está acostumado. “Tenho um pouco mais de sangue azul que deveria”.
Hugo solta à respiração antes presa e com ela algumas ultimas lágrimas rolam.
“Tua cor és bonita. Por que choras?” a menina volta a perguntar.
“Choro porque minha cor não é bonita sozinha” Hugo despeja. “Choro porque todas as cores são bonitas juntas e meu povo não vê”.
Ambos se olham por alguns longos segundos, pensativos.
“Deverias colocar tuas lágrimas no papel qualquer dia desses”. Diz. Logo em seguida retira sua capa lilás dos ombros. Camursa. Oferece então, em um ato de gentileza, sua capa ao rapaz. “Deverias também usar isto enquanto estiveres por aqui. É perigoso”.
“Obrigada” Hugo agradece. “Sou Lorde Hugo” Seus olhos brilham.
Bea ri.
“Um lordezinho!” diz. “Prazer, Bea”. A mesma Bea que lhe oferecera uma capa alguns anos atrás estava a sua frente, oferecendo-lhe o mesmo doce sorriso que sempre carregava nos lábios.
“Bem, e por acaso estava a me procurar?” Hugo questiona. Bea ajeita o macacão e toma um espaço para si sob o carvalho. Encosta em seu grosso tronco e fita o amigo.
“Talvez sim, talvez não”. Responde, instigadoramente, trazendo a bolsa para perto de si. “Depende muito se o Lordezinho deseja ser encontrado”. Abre seu zíper e remexe, a procura de algo. Hugo observa quase inexistente distinção da cor azul de sua pena em contraste com os cabelos de Bea. E enquanto a garota revira a mochila, Hugo contempla o momento nostálgico.  
Bea despertara-lhe uma intensa paixão pelas palavras. Seu tom de violeta, junto às outras cores de meias-misturas trouxeram-lhe algo que nunca havia sentido: plenitude. Com Bea pode divertir-se pela primeira vez, escondido em sua capa púrpura, com adolescentes que não o olhavam torto pela sua realeza ‒ ou falta dela. Exploraram locais ainda mais proibidos e imaginaram juntos histórias utópicas de uma Pandora toda colorida. Gostavam de mirar o céu em suas divisas, admirando os pontos em que as cores se tocavam. Gostavam de colecionar penas e tintas coloridas em segredo, de cada região que conheciam e habitavam. Cada segundo com ela era muito precioso para Hugo. Bea fazia Hugo estar em constante auto-exploração e auto-descobrimento. Bea fazia seus sonhos tornarem-se realidade, mesmo que apenas para ambos. Quando não podia estar com ela, conseguia sobreviver a partir de rabiscos ‒ chamemos assim, pois Hugo sente-se um pouco envergonhado de intitulá-los poemas ‒ em um caderno de anotações esquecidos pelos serviçais de seu pai. Este caderno, tornou-se seu melhor amigo e seu maior confidente.
Veio-lhe à mente que Brovália, sua professora de literatura não gostava de seus textos, apesar de não conhecer os que realmente importavam. Tinha o péssimo costume de afirmar que sua escrita não tinha técnica alguma e que escrevendo do modo com que escrevia, nunca teria prestigio como príncipe. Ainda completava com um debochado comentário: “Ainda bem que seus irmãos foram excelentes estudantes”. Hugo não se importava com o que ela pensava. Assinava como Pequeno Lorde Solitário devido a mania de Bea de chamá-lo carinhosamente de Lordezinho e o buraco negro insaciável que tinha na alma quando todo seu entorno era apenas azul. Envolvia-se mais com sua poesia do que com os outros indivíduos azuis. Não gostava daquela gente toda programada e toda igual. Professora Brovália dizia que a cor azul era a mais linda das cores. Hugo não discordava do todo. Até conseguia ver a beleza do azul, às vezes. Contudo, poderia uma cor ser mais bela do que a outra? Poderia Brovália saber a respeito de cores belas se apenas se dedicava a conhecer o azul?
Bea retira um envelope da mochila e entrega-lhe. A primeira coisa que Hugo nota quando a toma pelas mãos é o cheiro de perfume que alcança seu nariz. Lavanda. Seu coração palpita.
“Congratulações Especiais ao Pequeno Lorde Solitário do Vilarejo Único de Pandora” murmura a garota. Hugo sorri, por dentro, por fora, por todos os lados. Sente a grande atmosfera positiva da amizade e intimidade que criara com Bea no decorrer dos anos ‒ como com mais ninguém isso fora possível. Lembra-se do ano anterior.
Outro típico 23. Hugo acordara com os raios do sol transpassando a janela de seu quarto. Esfregara os olhos, mirara o teto. Por alguns instantes teve a impressão de que tudo ao seu redor girava. Ficou imóvel junto a seus lençóis. No quarto se instaurara um silêncio incômodo. Tinha preguiça de levantar.
Por fim, não teve escolha. Tomou as pantufas jogadas ao lado da cama e cruzou o quarto até sua mão encontrar a maçaneta da porta. Caminhou por todo o largo e longo corredor a passos vagarosos. Adentrou na cozinha cambaleando.
O sono dissipou-se. O sangue começou a ferver quando avistou todos aqueles balões. Havia esquecido completamente de seu aniversário. Completamente. Porém, parecia que naquele reino, um príncipe não podia ter paz nem mesmo em seu aniversário (Malditos Papéis Sociais). Todos os criados trabalhavam duro com a decoração da cozinha, e por isso não se deram ao trabalho de notar a presença do garoto no cômodo.  Hugo sentiu-se um pouco aliviado e menos frustrado por isso.
Seu olhar percorreu cada pequeno canto da cozinha. Havia doces exageradamente distribuídos pelos cantos, uma mesa farta de jantar com nomes de gente que nem mesmo conhecia e uma maleta de ouro azul aberta, para receber os presentes. Contudo, nada disso causou-lhe mais frustração do que uma pilha de envelopes rente ao que costumava ser o seu lugar na mesa de jantar. A pilha de convites que seu pai insistia em desenvolver ano após ano, mesmo que Hugo implorasse para que não.
Foi até lá e não se deu ao trabalho de analisar o conteúdo que oferecia o envelope. Rasgou o primeiro da pilha, que viu pela frente. Dentro, encontrou uma espécie de papel todo trabalhado em ouro, com tinta azul refinada, vinda dos potes sagrados. “Congratulações especiais ao Príncipe Hugo, oferecidas pelo Palácio das Três Cores” Hugo correu os olhos pelo resto do convite e quis morrer. “Capas azuis oferecidas no portão principal”. Disparou-se a correr muito rápido.
“Congratulações Aceitas” retorna. Retira o lacre do envelope bem pausadamente. Ele é grande e violeta. Parece ter sido feito e colado há dias. Depara-se com uma folha sulfite. Então desdobra o papel, um pouco sem jeito. Suas bochechas queimam. Após tanto tempo, ainda sente por algumas vezes dentro de si próprio uma espécie de tremedeira perto de Bea. Algo difícil de descrever e mais difícil ainda de sentir. Como se Bea fosse o único e mais encantador ser vivo de todo o universo.
Hugo sente-se profundamente amado ao checar o conteúdo da carta. Este, baseava-se em diversos corações coloridos, por toda a página, envoltos em desejos de felicidades. Nada de tinta azul sagrada, ou menções a respeito de capas. Os tais corações eram de cada um de seus amigos do Vilarejo, escritos a mão. Aquilo pouco importaria se não fosse tão simbólico e significativo para Hugo. Ele sentia-se amado. Tão amado quanto nunca fora em seu reino. Como nunca fora em sua família. Sente arrepiar seus pelos do braço e todos os membros do corpo.
“Gostastes?” A menina olha atentamente para o rosto de Hugo, buscando alguma reação. Ele sorri, timidamente.
 “Foste tu quem fizeste? A ideia e a execução?” questiona. Os olhos de Bea parecem estar mais violetas do que azuis para Hugo. Bea desvia o olhar. Em seguida, ajeita o cabelo e recosta na árvore. Mira o vilarejo.
“Os outros ajudaram com a confecção, mas a ideia foi minha mesmo” Diz, com certo orgulho. Hugo também se sente feliz por ter expressado gratidão à Bea. “Não tem festa hoje?”
“Provável, mas não quero ir”. Murmura, em um tom de voz que de tão magoado, beira a amargura.
“Deverias ir. É tua família”. A palavra família ecoa algumas vezes em seu subconsciente. Já estudara a respeito de família, muitas vezes. Era um assunto muito abordado nas aulas de Historicidade de Pandora ou de Sociologia Pura. Entretanto, por que tinha a sensação de que não conhecia seu significado, por mais que já houvesse ouvido, escrito e repetido por tantas vezes? Pensou em todos os aniversários que pôde. Pensou nos pedidos que fazia ao assoprar a vela, que a cada ano insistia em deixá-lo mais perto da morte. Todos eles tinham relação com o pai, à vontade de fazer que o pai se orgulhasse dele. Pensou na infância, em como a realeza o afastava das maravilhas de, por exemplo, uma vida colorida no vilarejo das misturas. Hugo sente um nó na garganta e segura às lágrimas. 
Hugo está muito distraído quando Bea faz algo inesperado. Bea descansa sua mão em cima da de Hugo. A princípio, Hugo toma um susto. O corpo do garoto esquenta, junto de suas bochechas. Milhares de pensamentos correm dentro de sua cabeça em fração de segundos e ao mesmo tempo sente como se lhe faltassem ideias. Posteriormente, quando se dá conta de que realmente vive uma situação como aquela, sua boca fica seca e seu coração acelera. Bea entrelaça seus dedos por entre os dedos de Hugo. O menino se encontra arrepiado. De súbito, envolve toda a mão de Bea e a segura com delicadeza. Sente um arrepio em resposta do corpo dela. Ela ainda olha para o vilarejo, e não se arrisca a mudar seu foco. Corajosamente, é Hugo quem volta seu olhar para ambas as mãos, unidas, para se deparar com a mais bela imagem que já presenciara. “Tenho coisas melhores a fazer”.
Bea só olha para Hugo quando sente suas lágrimas quentes em sua mão ligada a ele. “Lordezinho…?” A brisa cala o som da voz de Bea e o leva junto de seu espanto para longe. É como se nunca tivesse existido.
Então ela vê.
A mais pura expressão de amor.
A mais simples maneira de explicar a liberdade.
A mais doce prova da igualdade que era necessária para verdadeiramente se sonhar com o utópico Reino Único de Pandora, lugar sem divisão de classes sociais.
Suas mãos brilham intensamente com uma nova cor. Uma mistura de essências. Uma mistura de almas.
Os sentimentos de Bea também escorrem por seu rosto em forma de salgadas gotas de água. Suas lágrimas também se misturam às de Hugo.
 “Hás de topar um passeio comigo até o alto das colinas” Hugo sugere, sorrindo em meio ao choro.
“Acho que não se pode negar nenhum pedido destes para alguém que está de aniversário não é mesmo?”. Bea esfrega o rosto com sua mão livre e desencosta da árvore. 

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