quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Beneficios de Reescrita - Personagens

Reestruturar meus universos perdidos *segura o choro* (e me forçar a lembrar de histórias abandonadas há séculos) me fez refletir sobre três pontos interessantes a respeito dos personagens que criei até então (aliás, que espero que vocês todos possam conhecer muito em breve!)

O primeiro foi notar que alguns personagens eram mais profundos do que pareciam. Doutor Francisco foi um desses casos. Tenho certeza que vou ter uma imesa dificudade em voltar a escrever sobre ele, por estarmos intimamente conectados. Teremos que conversar muuuito. Isso porque eu me dei conta de que ele costumava ser o médico chave que eu utilizava em qualquer história que tivesse alguma cena de hospital. Aos poucos, ele foi se tornando tão completo e necessário que precisou ter sua própria história pensada e escrita. Eu acostumei tanto com sua presença que, para mim, um hospital sem o toque mágico do Francisco não era um hospital. Tinha sua compulsão por limpeza peculiar como um excelente virginiano, arrumava sempre tempo para ler palavras novas no aplicativo de dicionário que tinha baixado no celular e vivia se equilibrando entre crises psicológicas a respeito do suicídio dos pais e o drama de cuidar sozinho da irmã mais nova. Até ter que descrevê-lo, nunca tinha reparado o quão complexo este senhor era.
Por outro lado, outros eram mais superficiais do que eu havia imaginado. Começar o processo de reescrita, por exemplo, pela narrativa de A Águia e o Dragão foi de extrema importância. Apesar de escolhido ao acaso (a maneira mais fácil que encontrei de ser produtiva foi organizar os títulos das minhas narrativas em ordem alfabética e começar do começo), essa história era daquelas que estava na categoria de histórias abandonadas. Eu nunca havia conseguido entender ao certo o porque, mas agora vejo: os personagens não tinham vida, eram superficiais. Ao reescrevê-los, notei que não sabia quase nada de suas vidas, personalidades, sonhos, desenhos, sentimentos, etc. Camila era apenas uma garota que gostava de ler e Cadu um menino frustrado com a âusencia dos pais. Ambos compartilhavam quase que o mesmo espaço físico ao mesmo tempo que havia uma barreira social gigante entre eles. Os dois tinham um relacionamento que restrito ao interesse mútuo. Fim. Era tudo. Com um enredo todo montado na minha cabeça, mesmo me parecendo muito interessante de escrever, não podia ir para frente com  personagens tão rasos. De que gostavam? Como viviam? Tinham costumes singulares? Como havia sido a infância de ambos? Como funcionava o esquema de parceria? De onde se dera a relação de seus pais? Como eram no colégio? Etc, etc. Eu não sabia.

O segundo, foi constatar que alguns personagens, apesar de inseridos em contextos muitas vezes opostos e extremamente não compatíveis, tinham as mesmas questões mentais a serem resolvidas, lidavam com as mesmas dificuldades concretas e tinham os mesmos sentimentos que outros. (Que fique claro, porém, que, com os termos "mesmas, mesmos", desejo expressar igualdade no sentido mais fiel do ser igual e não só mera semelhança). Os personagens a que me refiro tinham nomes diferentes, viviam em mundos diferentes, eram físicamente diferentes e mesmo assim, estruturalmente, construiam o mesmo personagem, com a mesma ideia que eu gostaria de passar. Foi o caso de Amanda/Carol. Ambas eram jovenzinhas dark tentando sobreviver com suas questões passadas. Uma, com suas visões fantasmagóricas, outra, com a difícil missão de voltar para sua cidade natal depois de anos e rever pessoas da infância (inclusive sua irmã gêmea). Ambas histórias também estavam um pouco paradas. Eu nitidamente não me sentia a vontade para resolver seus conflitos internos, porque elas pareciam se misturar. Quando escrevia para uma, a outra travava. Confundia frequentemente suas atitudes (muitas vezes eu tinha que reler capítulos porque não me lembrava de quem tinha feito o que). Fazendo tal análise, finalmente posso enxergá-las e encaixá-las onde desejo.

terceiro, por fim, foi perceber que meus personagens tinham, em sua grande maioria, muitos traços meus. Seriam ramificações da minha própria personalidade tomando vida? Devo dizer que sim. Escolhi alguns personagens que muito me chamaram atenção enquanto eu trabalhava e entrarei mais em detalhes (é interessante perceber que selecionei muitos personagens mais antigos, porque são os que mais me parecem escancarados pela similaridade do meu próprio ser como pessoa - os mais recentes me são bastante nebulosos ainda).
Não me lembro ao certo quando eu comecei a escrever, mas lembro que meus primeiros personagens surgiram antes da fase das palavras. Na época, nem todo mundo tinha um computador (na verdade, quase ninguém. A internet ainda estava começando a bombar. Era discada e eu só podia acessar depois das duas horas no domingo, porque era mais barato - e eu só usava para entrar no site do iguinho), então eu costumava desenhar o dia inteiro. Como uma criança estranha que fui, desenhava pessoas de uma cor só e acabava por classificá-las em grupos, segundo regras que até hoje eu não sei como foram estabelecidas. Quando visitava loja de roupas, as vitrines e prateleiras me pareciam as torres do castelo das três cores, excelentes para usar de esconderijo. No supermercado, os carrinhos eram cavalos falantes perdidos de seus cavaleiros. O microondas girando para esquentar comida na hora do almoço lembravam soldados do povo amarelo se apresentando como dominadores de artefatos mágicos na guerra civil do reino. Aos poucos, me vi imersa em Pandora.
A primeira heroína de Pandora foi uma garota vinda da camada social mais baixa: a camada das misturas. Era nessa camada que ficavam a maior parte dos meus amigos. O nome dela era Jéssica, que (conhecidentemente?) também era o nome de uma das minhas grandes amigas de infância, meu objeto maior de admiração/contemplação. Os três governantes que compunham o castelo das três cores eram três figuras de extrema autoridade na minha vida e me provocavam aquele questionamento esquisito de verticalidade adulto-criança. Como minha primeira guerreira, revivo com orgulho que Jessica portou-se como uma verdadeira salvadora dos meus dilemas e conflitos internos, demonstrando-se corajosa e determinada para encarar os desafios que eu mesma não me sentia apta para encarar. Fez muito do que a Ana Beatriz mais jovem gostaria de ter feito. Logo depois nasceu Luana, protgonista da minha primeira tentativa real de escrever uma narrativa maior (salva em um disquete!). Era um pouco mais recatada, solitária. Não fazia o tipo humanitária como Jéssica. Tinha capacidade de ver o futuro e se encrencar, porque era também muito curiosa. Lembro-me bem do quanto estava imersa em leituras de fantasia (acho até que foi criada na época de Harry Potter) e do quanto nessa época, os livros me pareciam mais interessantes que qualquer relacionamento pessoal em si. Foi uma personagem que cuidou e expôs muito da Ana Beatriz tímida, intelectual, solitária. Vieram outros, de montes. A Lali, como minha primeira antagonista em foco, discutiu muito comigo sobre os fatos da minha adolescência. Nos aproximávamos em nossos desejos impulsivos e ao mesmo tempo nos afastávamos em nossas atitudes reais. Lali não tinha nenhuma piedade, culpa ou compaixão (e eu adorava como isso funcionava para ela!). Com a Jeni, experimentei o que era escrever sobre uma garota que gostava de escrever. Dela surgiu uma queridinha, a Pietra. Pietra tem muito da minha força rebelde, da crise dos quinze. Sinto a Jeni e a Pietra como personagens muito distintas, mas muito encaixadas. Como se ambas construissem duas partes opostas no meu cérebro, em convívio harmônico e cabuloso (id e superego, talvez?). Jeni era leve, colorida, amável, sutil, flexível. Pietra era o breu completo. Já a personagem Lorena foi um mistério no começo. Eu não sabia absolutamente NADA a respeito dela. Ela tinha acordado do coma e as coisas estavam diferentes, fim. Junto com a história do Francisco, a história de Lorena foi uma das maiores perdas. Notar que descobrí-la foi, em partes, também me descobrir é (estupidamente) uma surpresa (mais do óbvio). Eu comecei a escrever sobre ela por causa de uma garotinha que eu conheci e vi aprender a ler. Alice foi a tentativa frustrada da minha vida em tentar descrever a vida de uma pessoa adulta. Sempre senti falta de algo mais verdadeiro nela. Não consegui desenvolvê-la direito. Agora sei que por falta de experiência. Eu vejo que ela veio, com certeza, do meu estranhamento do comportamento dos adultos. Nos aproximamos muito na questão de organização (tanto mental quanto fisica - somos um desastre) e por sermos extremamente distraídas. Ela era professora (pasmem!), então talvez essa seja uma grande revelação dos meus próximos tempos, haha.
E.. ah, sim, tem também tenho os garotos! Costumo chamá-los de personagens desafios haha. Não sei até hoje se faço um bom trabalho com eles (uma vez um amigo me disse que eu não era muito boa nesse aspecto, porque garotos não notam cores de esmalte e o meu jovem Leonardo notava, risos). Doutor Francisco, é, de longe o meu maior projeto. Como eu já disse, é um personagem que realmente me consome. Ele me persegue, me enlouquece. Demorei a me dar conta do quão profundo e carente de atenção ele é. É a personificação das minhas neuroses, esquisitices e paranóias, e com quem eu mais frequentemente converso (não sou louca. Deixemos essa questão para outro post). Em Paulo, encontrei o meu melhor antagonista. Fiz questão de colocá-lo nessa seleção de personagens porque Paulo resume grandes lutas interiores minhas até os dias de hoje. A princípio, por fazer parte de uma história com muitos personagens envolvidos - e contada por um narrador personagem que de fato não o conhecia de verdade - é visto como um personagem bastante odiável. Aos poucos ele se desfaz e se revela, mostrando-nos um pouco de seus porquês (e faz isso muito bem). O Tiago é para mim tão forte quanto Paulo porque aborda uma temática que eu gosto muito: homossexualidade. Falar de homossexualidade é sempre um desafio, mas também algo que me parece bom e necessário. Ele é TÃO parte de mim! Convivemos com nossos questionamentos profundos a respeito de identidade. Às vezes eu sinto como que se eu sofresse por ele e com ele (talvez eu meio que sofra por mim, no final das contas). Ele não é assumido. Na verdade, ele nem sabia que era gay até morar em uma república - o que torna a história dele realmente bacana de contar. Eu estranhamente tenho por ele um carinho de irmão. Por fim, Heitor. Ah, senhor Heitor. O sorriso de covinhas dele me encanta (e ele sabe, haha). Heitor é um personagem muito confiante, alto astral, empolgante - apesar dos defeitos que tem, risos. Eu gosto do jeito que ele leva a vida, do jeito que ele se veste, como ele fala. É um dos personagens que mostra traços da minha personalidade porque é aberto, sincero, dialogador. Foi formado justamente para lidar com a Pietra fria e matadora. Ele é o equilíbrio, a paz, a ousadia. Além de extremamente charmoso. Provavelmente veio do meu ser livre, que pensa longe, que sonha alto (e do meu mapa astral repleto de planetas em aquário, risos).

Termino esse texto com um gostinho de quero mais (muuuuuito mais!). Acredito que foi um texto mais necessário de ser escrito do que de ser lido (pelo menos por hora, já que meus personagens ainda não foram expostos em suas devidas histórias) e peço desculpas. Não sei ao certo de onde me surgiram tais personagens que tanto se parecem comigo e que tanto estimo, mas sei que sem eles não seria a pessoa que sou hoje (por isso tanto chororô). Parece maluquice de escritor pseudoescritor (e talvez seja), mas eu os sinto realmente muito próximos de mim. Os momentos que vivo e que vivi só são e foram possíveis graças a esses companheiros mais que especiais.
Que eu possa sabiamente contar a vocês suas devidas histórias (e outras mais!).

Um beijão no coração 
Ab ~

2 comentários:

  1. ABB!!! QUE POST MARAVILHOSO! Desde que você me contou pela primeira vez sobre ser escritora e Pandora, fiquei morrendo de curiosidade de conhecer suas histórias e personagens. Ver você fazendo essa relação entre seus personagens e a si própria foi uma experiência muito muito interessante, principalmente por eu também ser aspirante a escritora (talvez com menos paixão e motivação do que você, mas até nisso estou achando ótimo acompanhar seu blog ;-; sempre que venho aqui me sinto inspirada a escrever). Lendo sobre seus personagens eu pude refletir sobre os meus e ficar super "puutz". Além de ter ficado com saudades de uns e outros.

    "A internet ainda estava começando a bombar. Era discada e eu só podia acessar depois das duas horas no domingo, porque era mais barato - e eu só usava para entrar no site do iguinho"
    ASHUHASUHASUH esse foi um comentário aleatório dentro do post, mas eu tive que comentar, pois me identifiquei muito (como todas as pessoas que foram criança/adolescente nos anos 90). Certeza que você entrava no site da Zuzubalândia!!

    "então eu costumava desenhar o dia inteiro"
    Cara, eu sei que você nos acha pessoas praticamente opostas, mas eu não canso de me surpreender com semelhanças que encontro entre a gente. Eu também passava a maior parte do meu tempo desenhando antes de aprender a escrever (eu diria que 50% assistindo desenhos animados e lendo gibis da Mônica e 50% desenhando, hm)! Um dia ainda vou te mostrar, eu tenho até hoje as pastas cheia das histórias em quadrinhos que eu costumava fazer. Às vezes tenho um pouco de vontade de voltar a desenhar, pois parecia tão fácil!! Eu nunca deixava uma história em quadrinhos sem fim e tinha ideias novas todos os dias, mas acredito que isso se deva ao desprendimento e espontaneidade da criança...

    "Como minha primeira guerreira, revivo com orgulho que Jessica portou-se como uma verdadeira salvadora dos meus dilemas e conflitos internos, demonstrando-se corajosa e determinada para encarar os desafios que eu mesma não me sentia apta para encarar."
    Perceber essas coisas realmente é muito legal! Eu também consigo perceber isso em todos os meus personagens, em maior ou menor escala, mas principalmente em dois deles, a Ethi e o Gustavo. Tinha uma época em que a Ethi protagonizada todas as histórias que eu escrevia, mesmo sendo histórias diferentes. E em cada história ela também era uma Ethi diferente, retratando a Beatriz que eu estava sendo naquele momento... Já o Gustavo é protagonista de uma história que venho criando na minha cabeça desde os 13 anos, mas nunca sequer tentei passar para o papel. É engraçado que eu nunca a vi como uma história "de escrever" e sim como uma "coisa" que vai se formando paralela à minha realidade, espontaneamente, conforme eu preciso de ajuda para lidar com as minhas questões. Acho que vou fazer um post no meu blog pra explicar melhor sobre isso, hm. Aposto que você faz o mesmo com os seus personagens!

    "Sinto a Jeni e a Pietra como personagens muito distintas, mas muito encaixadas. Como se ambas construissem duas partes opostas no meu cérebro, em convívio harmônico e cabuloso (id e superego, talvez?)"
    AHSUHASUHAUSHAS Cara, isso é muito legal!!

    "Alice foi a tentativa frustrada da minha vida em tentar descrever a vida de uma pessoa adulta. Sempre senti falta de algo mais verdadeiro nela. Não consegui desenvolvê-la direito. Agora sei que por falta de experiência."
    Sim! Também percebo isso nos personagens adultos que tentei escrever há algum tempo. É como se só agora eu pudesse enxergar neles toda a fragilidade que comecei a enxergar nos adultos ao meu redor, e não mais como se eles fossem um poço de segurança.

    "e peço desculpas"
    Não peça! Eu adoro seus posts de reflexões psicológicas, principalmente quando isso se une à escrita! (acho que dá para notar pelo tamanho do comentário, rs)

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  2. Eu nao acredito que voce leu esse post INTEIRO e ainda faz um HIPER comentario, Bia HAUDHAUDHAUDHAUDA Realmente, é incrivel ter essa noçao que nossos personagens sao vivos e ao mesmo tempo sao parte da gente!

    Sobre o a história do Gustavo, voce tinha comentado comigo uma vez e aposto que seria muuuuito legal ler um post a respeito!! (Estou no aguardo hihi)

    Ps viva zuzubalandia!!!!!!

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