"uma trança desfaz-se
calmamente as mãos
soltam os fios
inutilizam
o amorosamente tramado"
Orides Fontela
estava relendo um texto que escrevi para meu relatório final da disciplina de estágio de lingua materna II, do curso de letras. gostei tanto dele, aliás, que postei por aqui. já tinha escrito um percurso profissional outras vezes, mas sinto que este foi o mais lúcido que já escrevi. obrigada, professora patrícia, por me provocar a refletir.
a disciplina de estágio II foi uma das quatro disciplinas que eu cursei esse ano, que faltavam pra eu me formar. intuitivamente deixei ela pra fazer depois, pois sabia que seria mais penosa. tudo nesse ano foi penoso, porque eu realmente me propus a viver as palavras do ano: reparar, sustentar e investir. grande parte do ano eu gastei em sustentar, mas pra sustentar precisei olhar e me posicionar diante do que via. o investimento foi mais simbólico do que prático, entender e nomear o que gostaria de investir.
eu escrevi esse texto pro relatório de estágio no dia 8 de novembro. é engraçadissima minha relação com o tempo, pois escrevi o texto de metas do ano passado um dia antes dessa data. normalmente, escrevo em novembro e isso me irrita um pouco porque eu me sinto mal por não esperar o ano acabar pra viver movimentos de finalização - não consigo nem esperar dezembro chegar!
o tempo com certeza é um tópico que me atravessa nas minhas moções. este fato ficou bastante nítido quando me deparei com a palavra deste ano: acompanhar.
o que é acompanhar se não gastar tempo ao lado de uma companhia? participando de seus processos, vendo crescer.
eu acho que em 2026 vou acompanhar meus próprios processos e, dando atenção à eles, poderei oferecer espaços para outros que queiram minha companhia para a caminhada.
acho também que será claro quem caminha comigo e em quem devo investir - o tempo agora é meu amigo, e quer me revelar esse tipo de coisa.
a vontade de escrever meu texto de metas veio dia 8 de novembro. mas eu não o escrevi pois senti preguiça de pensar sobre o que eu gostaria de escrever. daí anotei para a Be do futuro poder acessar em outro momento menos preguiçosa.
neste dia, além do texto sobre meu percurso profissional, fui convidada para um churrasco de família. em um domingo. churrascos de familia em domingos são o ápice da intimidade, me disseram.
eis agora eu, a Be do futuro, descobrindo que eu já tinha um texto: um relatório de estágio e um churrasco. e domingos.
não era preguiça, Be, era intuição. eu achei que eu precisava de disposição pra escrever meu texto, que sabia alguns tópicos que queria que constassem nele, mas nao sabia desenvolvê-los. é que as palavras chegam depois das emoções. e, dessa vez as palavras já estavam todas lá, no meu texto, eu só precisava reparar.
eu sou meio ruim em sustentar porque quando eu reparo eu me assusto muito. então, as vezes, eu só vou sustentando sem reparar até eu não conseguir não reparar ou não sustentar mais. 2025 me ensinou, porém, que eu posso praticar ir reparando aos pouquinhos. e daí sustentando (conscientemente), mais aos pouquinhos ainda. e investir? bom, essa parte eu ainda não sei lidar, ainda estou elaborando esse termo do meio, a tal da sustentação. ela roubou toda a cena do tripé - e eu achando que um ano seria suficiente pra percorrer três palavronas desse naipe.
o meu texto para o relatório era meu texto de SUSTENTAÇÃO. nele já tinha tudo o que era importante ter, mas eu não conseguia ver. esse texto aqui é o meu texto de REPARO. em algum momento existirá um texto de INVESTIMENTO? não sei. talvez. aprendi esse ano a gostar muito do número três e a esperar os tempos que nele implicam.
percebo agora o quanto as palavras me ajudaram a abrir espaço no mundo pra existência do meu corpo. na minha história, as palavras estavam presas na experiência de contradição das mulheres da minha família com relação à educação. o espaço do professorado era de afirmação de estereótipos de gênero dominantes, o que permitia uma relação com as palavras sem que essa relação fosse colocada em foco para as normas da sociedade patriarcal neoliberal. isso sempre me machucou porque, apesar de um espaço, não era um espaço livre. mesmo assim era o que importava para minhas ansestrais, pois através das palavras e dos estereótipos de gênero é que elas puderam se expressar e existir como mulheres. mas pra mim isso não bastou...
eu estava fadada ao engessamento das palavras. à essas palavras tão duras e sem movimento. mas, dentro de mim, havia um desejo genuíno... o de ser escritora.
o que é uma escritora? é aquela que cria com as palavras.
por muito tempo a psicanálise foi um espaço de palavras com significados vazios. de composição. em 2025 experimentei, pela primeira vez (com a ajuda de drogas KKK!!!), um espaço de palavras decompostas. e agora, nas últimas semanas, tenho tido a experiência das palavras como oferecimento de um contorno.
a psicose, segundo colette soler, é o inconsciente à céu aberto. o que isso significa? que as palavras não significam, que elas imploram por significação, que a angústia não é contida pelas palavras.
a significação custa. a castração, saber que algo me falta.
quando eu escrevo meus agradecimentos naquele texto, eu ingênua e autenticamente nomeio cada um dos meus laços. vendo agora, contemplo com uma sutileza e sensibilidade tão grande minha escrita que copio ela aqui:
"dedico esse texto à minha avó, aparecida, já falecida, matriarca da minha família, por não desparecer da minha história; à minha mãe, adriana, que decidiu que queria ser mãe, criou e sustentou para mim um espaço de amor de onde pude começar a caminhar na minha vivência como ser humano e mulher; para letícia e sabrina, mulheres que escolhi para serem minha família; para minhas amigas, vitória, gi, bia, marina, tamires, amanda, isa e glen, por serem espelhos onde eu posso me ver, trocar e me fortificar de modo tão cru e importante; para lua, que me deu a mão e me puxou do abismo; para ingrid e maria, que ao me afetarem com suas estruturas e modos de serem mulheres me apontam minha missão de vida; para as professoras que passaram por mim, tanto as que ocuparam um lugar de suposto saber quanto minhas colegas de profissão (até para a minha chefe com quem tenho tantas dificuldades de relacionamento, que continua sendo uma mulher que sobrevive e ocupa cargos que nossas ansestrais lutaram para que pudéssemos ocupar), como mulheres que me atravessaram com seus corpos e discursos, em especial para a professora patricia bedran, que com sua humanidade e jeitinho particular contribuiu tanto para minha formação.
dedico esse texto também ao meu pai, que ainda está aprendendo a sustentar o seu nome na nossa relação e ao meu avô, meu professor favorito".
nesta dedicatória, eu vejo com clareza os lugares que escolho entregar aos meus laços. eu escolho reparar. e não me assusto.
não tem porque eu seguir temendo (fóbicamente!) o que sinto.
o que sinto é uma semente, que, como um ato falho, indica uma posição subjetiva. se vou regá-la ou não, é escolha minha.
METAS PARA 2026
pessoal
viver mais, anotar menos. ou melhor: viver primeiro, anotar depois.
me entregar nos meus projetos e relações. buscar mais qualidade que quantidade.
valorizar e comemorar conquistas.
perguntar mais.
não me perder dentro de mim mesma; não me perder nas minhas relações. achar um meio termo entre meu espaço pessoal e o espaço dos outros.
ousar reparar, escolher o que quero sustentar, investir ao invés de apenas reagir.
social
acolher e abrir espaços de encontro com a minha família.
me abrir, com prudência, à relações que me atravessem.
me conectar com novas mulheres.
comemorar datas significativas durante o ano, criando tradições.
organizar uma viagem por semestre (São Paulo, Minas, Punta del Este, ??).
Fazer minha própria festa de final de ano.
espiritual
ser meu próprio apoio.
me desvincular da culpa cristã.
saúde
voltar pra academia
voltar a andar de skate e a nadar
fazer aulas de dança com a doroc
comer mais saudável.
lazer
participar com mais frequência de atividades culturais: cinema, teatro, palestras, shows.
usar menos redes sociais.
ler pelo menos um livro de ficção por mês.
voltar a frequentar o clube do livro em espanhol.
financeiro
organizar com clareza o dinheiro que entra e que sai.
planejar comprar um carro.
estudos
retomar supervisão
me preparar e prestar o DELE (até o meio do ano)
fazer aula de conversação em inglês
tentar ser aluna especial em uma disciplina do mestrado
não perder de vista: pós na ESPE.
trabalho
estar aberta a aprender e me reinventar na escola.
não esquecer que luto contra o projeto político neoliberal de sucateamento da educação e que o meu papel como professora é sustentar um espaço de desejo nos meus alunos e ampliar as fronteiras simbólicas (e quem sabe espaciais) deles.
aproveitar o encontro diário com meus alunos e pacientes.
ter mais pacientes.
investir na psicanálise (descobrir como).
clube do livro mulheres.
oficina de literatura infantil e psicanálise.
GEPUL.
grupo de estudos em psicanálise.
oficina de práticas manuais para mulheres.
grupo de conversação em espanhol A1.
oficinas de literatura para adolescentes.
voltar a usar minhas habilidades musicais pra ganhar dinheiro?
não perder de vista: trabalho com tradução free-lancer
De gotinha em gotinha, baldadas e secas, o seu mar bateu nas rochas e transformou, semana a semana, o seu ser/estar.
ResponderExcluirEu tenho profundo orgulho de todos os seus processos e estou aqui contemplando seu caminhar.