sábado, 8 de novembro de 2025

tornar-se professor é um ato de resistência

           desde criança, me sinto fadada à educação. sinto como se não houvesse outra escolha de vida pra mim. demoro pra nomear isso, o faço apenas esse ano, depois de anos de análise. depois viver duas graduações de licenciatura me confrontando com sentimentos ambíguos que misturam revolta, raiva, indignação e desprezo com esperança, desejo de trans(formar).

venho de uma família de professores. de professoras, na verdade. por isso, tenho memórias que misturam momentos de convivência familiar, como almoços de domingo na casa da minha avó materna, com discussões, frequentemente acaloradas e repletas de indignações, entre ela e minhas tias, sobre as realidades vividas na prática da profissão. a educação parece ter sido diluída em mim como um elemento corriqueiro da minha rotina, tecendo meu corpo com outros elementos da minha cultura familiar.

nas férias, eu precisava acompanhar minha mãe na escola, pois minhas aulas terminavam antes das dela. eu ficava ali, naquele habitat, (ab)sorvendo o mundo. atenta. aos meus pares, que me faziam pensar sobre meu próprio crescimento, já que minha mãe regularmente escolhia a mesma faixa etária para dar aulas, então enquanto eu crescia, os alunos dela, apesar de terem novos rostos e personalidades, tinham a mesma idade, e eu não; aos adultos, que me faziam estranhar incoerências que hoje normalizo tão facilmente; aos professores, adultos que sabiam coisas que eu não sabia; às realidades concretas, por vezes tão próximas às minhas e por outras vezes tão distantes… e por outras, as duas coisas. 

a escola era, ao mesmo tempo, a minha rotina, um ambiente seguro e previsível, que eu conhecia com tanta profundidade informal, algo tão meu… e um infamiliar, um estranho, um elemento desautomatizador.

costumava me esconder na biblioteca, pra me esconder da desarticulação do significante escola com o significado meu. nos livros, nas palavras que eles me davam ou no movimento que eu fazia de organizá-los por categorias cuidadosamente, eu abria um espaço novo. eu tentava abrir esse espaço. um espaço no corpo, com o corpo. uma tentativa de transformar o infamiliar, o improcessável da escola em algo possível, simbolizar algo do real. 

venho de uma família de professores. de professoras, na verdade. que, com seu trabalho, contribuíram com o sustento de suas famílias. 

a docência, na sociedade capitalista patriarcal, pode ser ideologicamente associada ao estereótipo de gênero do cuidado, delegado por esta ideologia, às mulheres. este ano, percebi que as mulheres da minha família se utilizaram de diversos estereótipos associados ao feminino como forma de resistência e sobrevivência: minha avó e minha mãe, ambas sendo professoras e mães, exercendo esse lugar de cuidado, puderam ter acesso a uma casa minimamente habitável e um espaço social de respeito, que, apenas sendo mulher, talvez não teriam alcançado.

a docência deu às minhas ancestrais um ambíguo espaço: o de sobrevivência. tomando para si tais estereótipos - pois foi o meio que encontraram de sobreviver - o ressignificaram, ainda que, talvez, de modo inconsciente. eu, na biblioteca, sendo incomodada pelo infamiliar da escola na minha história, estava ensaiando abrir um novo espaço para as mulheres da minha família - as do passado e as do futuro -, para além da sobrevivência: o espaço de viver. 

passo toda minha infância e adolescência sonhando em ser escritora, mas com uma certeza triste de que não seria porque, de algum lugar, eu estava fadada a ser professora. 

entro no curso de psicologia. a psicanálise, que já me acompanhava desde os treze anos e que era um lugar de palavras fadadas aos seus significados começa a ser um lugar de decomposição. agora, depois de tanto tempo, a psicanálise finalmente parece ser um lugar de contorno.

entro no curso de letras durante uma pandemia. sempre que narro este momento, o nomeio como “um momento de surto”. acho que porque o contexto pandêmico me parecia tão absurdo e inadministrável que eu me autorizei a pensar sobre o que eu desejava. acho que quero passar a narrá-lo, a partir desse texto, como “um momento de lucidez”. na psicose, que é a estrutura psíquica do louco, pra psicanalista colete soler, é a vivência de um sujeito imerso ao real marcada pela ausência a mediação simbólica proporcionada pela linguagem. ausência não, de uma grande distância. nesse sentido, o louco é aquele que tem seu “inconsciente a céu aberto”, é um são sem a capacidade de simbolizar, contornar.

eu nunca entendi exatamente o que eu buscava no curso de letras. eu sabia que tinha a ver com a psicanálise e dizia que buscava um aprofundamento dos meus conhecimentos de linguística e também de literatura. nunca numa perspectiva da educação. mas não sabia responder a pergunta: “por que não um mestrado?”. eu queria a graduação. a(s) letras (formando sílabas, e palavras, e frases, e textos, e discursos, e… sujeitos!) era um espaço em que convivia o meu destino desgostoso do qual não me sentia capaz de abrir mão à um desejo: o amar para viver, não para sobreviver. 

me lembro vagamente do que vivi na graduação em pedagogia. sentia uma anestesia entre eu e minha relação com o mundo. na letras, eu queria que fosse uma experiência diferente: queria viver com a maior abertura possível. isso não significava adquirir conhecimento teórico, e sim me permitir ter experiências (que contavam com conhecimentos teóricos, mas iam muito mais na direção de como me afetavam as relações, as ideias, o meu presente…).

encontrei dificuldades em bancar essa abertura de mundo. primeiro porque entendi que era um exercício difícil sustentar essa abertura. queria controlar, saber. não queria perguntar, acolher os sentimentos. e segundo pois sentia fechamentos por todos os lados, uma resistência à abertura. paradoxalmente, isso pode ser exemplificado na figura de professores extremamente rígidos e conteudistas, nada maleáveis com contextos dos alunos e diversas outras realidades socio-políticas que foram se tornando visíveis para mim no campus (em um processo de realmente passar a enxergar algo que já estava posto e para mim, por muito tempo, tinha sido invisível).

cursar letras, nesse sentido, foi uma experiência que me colocou em contato constante com sentimentos de frustração, revolta, raiva e decepção (aqueles que já estavam sendo sentidos lá no começo da minha história). 

só que, diferente de anestesiar, como fiz na graduação de pedagogia, eu escolhi sustentar. 

essa mudança de posição, como uma trança que se desfaz para depois se refazer, fez com que eu tivesse uma experiência prática com o processo de me tornar professora, o que foi fundamental para que eu pudesse desarticular esses sentimentos relativos à educação ao curso. com o passar do tempo entendi que esses sentimentos são fruto de um projeto político ideológico, que não tem nada a ver com a educação. que o professor, na verdade, é aquele que abre o espaço pro desejo e sustenta bancar esse lugar. que isso não está claro para muitos professores, inclusive estes que citei e que essa resistência à abertura, é uma estratégia de manutenção para o mantimento do status quo do sistema educacional (e do sistema capitalista neoliberal). 

realizar o estágio de língua materna II foi fundamental para toda essa elaboração das experiências práticas que tive sobre educação, desde a relação que estabeleci com a cultura que me foi oferecida a partir de crescer em uma família de educadores até minhas experiências como estudante em todo meu percurso escolar e de graduação, pois me possibilitou entender quais as circunstâncias que me levaram a estar ocupando o espaço que ocupo hoje e porque. 

para mim, cedral não é uma cidade qualquer, mas a cidade que meu avô, minha pessoa favorita no mundo, viveu por quatro anos de sua história. meu avô era o lugar para onde eu ia quando não conseguia mais suportar o mundo. ele me oferecia espaço. nos almoços de família, quando eu não suportava mais ouvir as conversas sobre escola, eu o buscava e encontrava, em sua cadeira de alpendre, fumando e vendo o movimento. então eu me sentava com ele e, por vezes, trocavamos ideia sobre a vida. ele me contava da vida dele, me perguntava da minha, fazia piadas sem graça. por outras, apenas compartilhamos silêncios. por outras ainda, eu levava um livro e ficava lendo ali. 

meu avô sabia coisas lindas. ele me contava histórias quando minha mãe saia para trabalhar, só pra me distrair da saudade que eu sentia dela. ia caminhando comigo até a banca para comprar figurinhas antes de ir pra escola e lia livros adolescentes pra conversar comigo. ele comprou uma barsa pras minhas tias, quando esse era o jeito que as pessoas ricas tinham pra acessar o conhecimento, mesmo que fosse um bem bastante caro. ele leu todos os volumes, valorizou cada página. 

julgo dizer que os quatro anos que meu avô viveu em cedral foram os anos mais importantes da sua vida, porque foram os únicos anos a que ele teve acesso à educação formal. esses anos moldaram radicalmente seu jeito de ser e de se posicionar diante do mundo, porque o deixaram com sede de saber mais, sendo exemplo pra mim do que é ser um professor. essa oportunidade de estudo ter sido roubada do meu avô o fez se agarrar no desejo de saber e na potência dos laços (sempre lembrava dos amigos da escola) e não nos conteúdos que poderia aprender ou lugares que poderia alcançar socialmente com um diploma. isso é vida, não sobrevida. 

percebo agora que, minha família é, de fato, uma família de professores. não apenas de professoras. 

fazer o estágio de lingua materna II foi fundamental especialmente porque foi realizado em cedral, na rede pública a qual sou servidora atualente. a experiência de regência me fez tocar essa sensação de resistência, alienação e anestesia na qual um professor é inserido quando adentra ao sistema educacional e nomeá-la dentro da minha história. 

cedral é uma cidade pequena não só em tamanho e habitantes, mas também na cachola de seus moradores. em um mesmo quarteirão, lado a lado, você encontra um banco, uma praça, um mercadinho, uma igreja evangélica e um buteco. ela representa resistência com um novo sentido: uma existência nova. isso ficou claro na minha experiência de estágio. ser professor é re-existir, resistir. uma educação que mantém o status quo, quer manter essa pequenez de desejo. mas não é fácil: nascemos pra viver, a vida pulsa em nós. pude enxergar isso nos adolescentes indisciplinados, nos servidores anestesiados e resignados. cedral é metáfora de tantos contextos... enxergo agora que meu trabalho é apostar, diariamente, que cedral pode ser grande.

cedral é minha história...

...porque mudou radicalmente o percurso do meu avô, que, ainda que não tenha conseguido enxergar a sua vida como significativa pra alguém, conseguiu me transmitir essa postura desejosa de mundo que é a postura de quem pode realmente ensinar algo a alguém e conseguiu que uma professora sendo gerada colhesse os frutos que outros professores plantaram; 

...porque, sem perceber, eu consegui abrir um espaço de mudança de posição na minha história com a educação, materialmente, no meu corpo, e nas terras que abriram esse espaço pro meu avô; 

...e, terceiro porque eu sou o espaço aberto pra outras pessoas pessoas que virão, espaço que sustentarei para que elas possam ousar tentar enxergar a educação como ferramenta de transformação.


há vida em cedral, há vida nas cedrais do mundo e há vida para além das fronteiras de cedral.


há vida em mim e eu escolho sustentá-la - esperando encontrar companheiros no caminho que tornem o andar mais especial e leve.


sem perceber, a garotinha tornou-se mulher. 


sem perceber, a estudante se tornou professora. 


dedico esse texto à minha avó, aparecida, já falecida, matriarca da minha família, por não desparecer da minha história; à minha mãe, adriana, que decidiu que queria ser mãe, criou e sustentou para mim um espaço de amor de onde pude começar a caminhar na minha vivência como ser humano e mulher; para letícia e sabrina, mulheres que escolhi para serem minha família; para minhas amigas, vitória, gi, bia, marina, tamires, amanda, isa e glen, por serem espelhos onde eu posso me ver, trocar e me fortificar de modo tão cru e importante; para lua, que me deu a mão e me puxou do abismo; para ingrid e maria, que ao me afetarem com suas estruturas e modos de serem mulheres me apontam minha missão de vida; para as professoras que passaram por mim, tanto as que ocuparam um lugar de suposto saber quanto minhas colegas de profissão (até para a minha chefe com quem tenho tantas dificuldades de relacionamento, que continua sendo uma mulher que sobrevive e ocupa cargos que nossas ansestrais lutaram para que pudéssemos ocupar), como mulheres que me atravessaram com seus corpos e discursos, em especial para a professora patricia bedran, que com sua humanidade e jeitinho particular contribuiu tanto para minha formação.


dedico esse texto também ao meu pai, que ainda está aprendendo a sustentar o seu nome na nossa relação e ao meu avô, meu professor favorito.


nota: escrevo o texto sem usar maiúsculas pois quero deixá-lo materialmente atravessado pelas minhas palavras, que são meu corpo. é este corpo autêntico, singular e único que sustenta minha docência. este lugar de falta a ser. é esta narrativa a minha contribuição para a sociedade, assim como espaço que abro todos os dias existindo como professora na educação pública.


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