quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Por amor às causas perdidas

Saber, em espanhol, não tem apenas o sentido de conhecer sobre algo. Também pode significar saborear, sentir o gosto. Esse sentido não tem uma tradução exata, é uma construção própria da língua espanhola. Há algumas semanas, eu li um poema de Marina Romero, uma poetisa do contexto do exílio espanhol. A guerra tirou dela o sabor do beijo de alguém que amava.  Como eu não sabia esse outro significado do verbo saber, não pude saborear o poema de primeira. 



Às vezes eu tenho essa coisa de não saber saborear as coisas de primeira. As vezes elas passam por mim e eu nem me dou conta do quanto são importantes até que eu tenha perdido a chance de saboreá-las. Às vezes eu trato alguém com vários significados como se só tivesse um. E perco os significados que mais me alcançariam (e eu nem tô falando sobre significados que deslizam). Significados que mexem com meus sentidos: a visão, a audição, o olfato, o tato... e o paladar.  Quando eu entendi do que a poeta falava, eu pensei: que sabores minhas guerras tiraram de mim? Mas agora entendo que a pergunta é diferente da pergunta da Marina: que sabores eu nunca senti e gostaria? Às vezes eu perco a chance de saborear. 

Eu me lembro de quando meu namorado, agora ex, começou a trabalhar como mediador de artes no SESC. Ele quis que eu fosse a primeira pessoa pra quem ele mediaria. Eu achei que essa seria a coisa mais especial que eu poderia receber dele naquele momento, pois gosto de me sentir a primeira. A única, na verdade. Mas não foi. Como todas as outras que já visitei, a exposição tinha vários setores, cada um sobre uma obra e um artista. Ocupavam pouco espaço, e as explicações eram curtas. Estávamos envergonhados por aquela empreitada: ele se mostrando e eu o aplaudindo. Mesmo assim, conforme o Iuri me contava sobre algo que ele tinha aprendido, eu percebia que ouvir aquelas palavras não era me apropriar de um saber, mas abrir uma porta. Tipo no Monstros S.A. Cada setor da exposição era uma porta para um universo e eu ainda estava do lado de fora. 

Quantas portas eu não abri? Agora eu entendo que me acostumei a te olhar como uma porta fechada. Eu sinto tanto medo de abrir que chego a desejar que o ápice do meu encontro com você seja uma porta fechada, compondo uma pequena sessão na exposição da minha vida. E se sua porta for tão legal que eu não vou mais conseguir fechar mais ela? E se eu te beijar e eu sentir o sabor do sal, da água, do rio, das cores, do amor...

Esse lugar pequeno serve pra me proteger. Sabe? Estou sempre me relacionando com pessoas emocionalmente indisponíveis. E quando algo dessas relações encaixa, é com a porta fechada. A porta fechada é requesito para um relacionamento ser possível para mim. Não só a sua, mas a minha. Eu tenho tanto medo... E daí, quando me sinto segura pra abrir... não posso, pois significa alterar a dinâmica. 

Das poucas vezes que a porta não está mais fechada, não acontece da primeira vez. Primeiro eu sei e depois, se há um depois, eu saboreio. A impressão que eu tenho é que é preciso tempo. Tempo pra saber se há coragem o bastante de alguém para suportar essa abertura. Suportar essa abertura - amo as palavras que saem nesse texto. 

Com meu avô a porta estava sempre aberta. Pro mundo. Pra vida. Pras cores e sabores. Sutilmente, cotidianamente, ele abria a porta para mim. Todos os dias ele abria. A dele, a minha. Ele não cansava de abrir quando eu fechava. 

Como viver em um mundo sem você, vô? 

Como encontrar isso em alguém de novo? Agora só restou um buraco. 

Eu não tenho mais alguém no mundo cuja a porta está aberta pra mim... e queria isso agora. Eu queria isso com outra pessoa além de você. Uma pessoa que não fosse da família, que de preferência eu pudesse beijar. Mas eu sei não é possível, demanda tempo, energia, desejo. Demanda comer, rezar e amar. Demanda, demanda, demanda. Eu não sei fechar sua porta. Eu não quero fechar sua porta. 

Queria tanto conseguir abrir a porta pra alguém sem tantos rodeios. Queria tanto acessar a porta de alguém sem tantos medos. Sabendo dos riscos e belezas da exposição. Os riscos e belezas de trocar a posição velha por outra, numa ex-posição. 

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