quarta-feira, 25 de maio de 2016

Ode ao Luto

"Se meu cabelo cair você me dá o seu?" Alguns momentos não saem da cabeça tão fácil. Enquanto eu tento ser forte para a minha mãe, eu choro escondida no banho, onde as lágrimas podem se misturar com a água que cai do chuveiro. Minha avó ainda tem cabeça de jovem, quer desbravar o mundo, cozinhar e contar histórias. Mesmo assim, o câncer a escolheu.
Eu posso lembrar de quando era mais nova e a casa dela era minha segunda casa. Ela abria a porta de manhã para me recolher pouco antes do horário de entrada na escola da minha mãe, segurando a vassoura ou o produto de limpeza. Eu ia para o quarto da minha tia e me enfiava na cama por ela mal feita, enrolada no edredom. Os passos da minha avó de um lado para o outro, assim como seus assovios, eram como uma canção de ninar. Eles me embalavam e me envolviam até que eu dormisse.
Eu lembro que sabia os dias exatos que os batentes das portas estariam aptos para escalagem, sem verniz. Lembro de como ela me tomava a tabuada e como me dava bronca com os cabelos sujos e mãos molhadas. Lembro do cheiro da pipoca estourando no fogão e do brigadeiro de panela caindo no prato fundo. Naquela época, eu costumava saber onde ficava a chave da gaveta de balas. Eu sabia onde ficava o chocolate escondido, o horário que saía o almoço, o humor do dia que seus olhos transpassavam. Sabia que tinha papel higiênico atrás do vaso sanitário quando acabava o do porta papel. Hoje não sei mais.
"Por que essas pessoas com câncer ficam tão em cima do muro? Por que não curam, ou morrem logo? Que saco!" Eu disse para a Mari, minha amiga da Pedagogia (que posteriormente me contou que a mãe tem câncer há anos, pasmem) a respeito do melodrama do John Green, em "A culpa é das Estrelas". Disse antes dos acontecimentos, de forma rude e ríspida, extremamente magoável. Incrível, é, porém, o fato de não existir nada no mundo que expresse mais verdadeiramente o que sinto hoje, em relação à dor física e psicológica de uma pessoa doente.
Sempre agi de forma agressiva nos relacionamentos. Sempre me afastei e disse coisas sem pensar. Sempre magoei pessoas. A mel foi embora de repente, em menos de uma semana, por uma infecção no sangue. Foi logo depois da notícia da minha avó, o que acabou por me desestruturar ainda mais. O veterinário veio buscá-la aqui em casa quando eu não estava, e a levou de mim antes que eu pudesse me despedir. Não tive uma boa despedida. Da última vez que a vi, estava com pressa demais para ir para a faculdade. Mal a toquei, mal a olhei. E então eu chorei de soluçar nos braços da minha mãe quando o portão de casa se abriu e ela não ergueu a cabeça em minha direção. A casa ficou estupidamente vazia. Vinha agindo de forma agressiva antes de seus últimos dias, e piorava na postura a cada ligação com notícias ruins sobre a minha avó. Aparentemente inexplicável.
Com a ajuda da minha terapeuta, percebi que meu complexo do compromisso tinha um quê a mais que apenas traços da minha personalidade. A morte me trouxe grandes auto-significados. Um mecanismo de defesa que chamei de bolha. Entendi que minha raiva, irritação e afastamento tem sido o modo como há tempos eu lido com a realidade tão dura de amar pessoas que escolhem ir embora. Agora elas não escolhem. Lembrei da morte do Dodô, da ilha dos cães que meu pai criara. Dez anos tinham passado e eu continuava a mesma menininha bebendo água com açúcar da caneca do Piu-piu. Meus pais indo e vindo de suas viagens, o pedido para que ficassem entalado na garganta, mudo. Do mesmo jeito que eles iam, todas as pessoas iam também. Mas elas iam de vez.
Não me revolto, nem sinto-me apática. Apesar de triste, vejo-me como ativa e dona dos meus próprios sentimentos, uma vez na vida. Quando penso essas coisas, fico irritada comigo mesma por dar minha avó como morta. Isso porque ela continua viva, mas é como se definhasse na minha frente. É frustrante. Ao mesmo tempo, eu não digo que entendo, porque seria mentira, mas aceito que pessoas morrem uma hora ou outra. É tipo algo muito bom que eu escrevo e acidentalmente perco. Aparece aquela tela branca no computador junto de um sentimento no peito de raiva e irritação, seguido de tristeza profunda. Só que a ideia continua lá, e faz surgir uma vontade de fazer de novo só pra valer a pena. A ideia continua lá. A saudade também. Parece uma comparação estúpida quando falo, quando escrevo... até quando penso. Mesmo assim, faz sentido para mim. Eu gosto de pensar que temos algum motivo para vivermos nosso tempo limitado no mundo, então seguro as pontas.


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