terça-feira, 10 de maio de 2016

No fim, enfim, saí de mim.

Essa história gira em torno de três personagens - uma menina normal, um velho barbudo e uma casa com muros verdes e altos. A menina era normal porque não tinha nada de anormal, o velho era barbudo porque há muito tempo não fazia a barba e a casa tinha muros altos e verdes porque eles não eram baixos nem amarelos. A menina era vizinha do velho, que morava na casa dos muros altos e verdes. O velho era seu professor de literatura e ela a aluna que dormia a maior parte do tempo das aulas, com a cabeça encostada na parede. 
Todos os dias pela manhã, a menina acordava antes da mãe, do café e da hora de ir pra escola. Ela saia para correr. Adorava esportes tanto quanto não gostava de literatura. Quando passava pelos muros altos e verdes do velho barbudo, achava-os desinteressantes e desbotados. Tinham rachaduras por todas as partes e, ao seu ver, eram feios. Comparava-os com os muros que cercavam sua casa, amarelos e simpáticos, e ficava aborrecida com o descuido do vizinho. Não o compreendia. "Os muros combinam com sua personalidade mórbida e chata", debochava em pensamento. O conceito que tinha do professor não era lá dos melhores.
Enquanto a menina corria, o professor botava a água do café para ferver e ia até a varanda pegar o jornal. Lia algumas notícias e rabiscava notas que lhe vinham na cabeça em um caderno mal encapado. Morava sozinho, apesar de não ser solitário. Sentia-se quase parte da casa, imerso nos livros e na companhia de seus personagens. Quando tirava a velha brasília barulhenta da garagem, tirava com dificuldade motora, e a menina que já retornava da corrida, ria um riso maldoso frente ao portão de sua casa. Raramente conversavam. A rotina permanecia a mesma dia após dia
E então, numa manhã, as coisas foram diferentes. 
A menina acordou no horário costumeiro, colocou as roupas de corrida e bateu o portão da casa. Correu pelo menos por três quarteirões antes de começar a ofegar. Levou a garrafa de água aos lábios - sentia mais calor do que costumava sentir. Do outro lado, porém, havia frio. O velho barbudo ficara silencioso de repente, debaixo de seus cobertores. Não havia se levantado para ferver a água do café, pegar o jornal ou esquentar a brasília barulhenta. O fio da vida se rompera para ele - e, aparentemente, isso não importava para ninguém no mundo. Na volta, a menina achou que havia algo estranho na casa de muros altos e verdes. Estava silenciosa demais, fechada demais. Chegou mais perto, curiosa. Olhou no relógio e ainda estava cedo. A calçada não as tinha marcas de roda que a brasília deixava. Lembrou que já vira o velho tirar a chave reserva debaixo do enfeite de sapo. Não hesitou muito, procurou e estava lá. Abriu o portão em um estalo.
Achou que talvez estivesse sonhando. Viu uma varanda grande e comprida, cheia de flores e folhas caídas, escondida pelos muros altos e verdes. Já havia visto de relance uma vez ou outra, mas nunca tão de perto e com tanta atenção. Nunca tinha enxergado-a como algo bonito. Era selvagem e costurada, própria. Notou estranhamente que o carro ainda permanecia na garagem. Caminhou até a porta a passos inquietos. Seu coração batia rápido - parecia saber que algo estava errado.
A porta da casa estava destrancada, e ela a empurrou. Ficou imaginando o quão fácil seria assaltar aquele velho maluco. Deparou-se com um cômodo após outro, todos com móveis empoeirados e trabalhados em uma arte exótica, preenchidos de livros e porta-retratos de cabeça para baixo. O teto era sempre azul e tinha fios de nailon que dele caiam segurando papéis coloridos cheios de anotações. Eram citações de escritores famosos, constatou. A cozinha estava bagunçada e tinha louça suja na pia. Os corredores da casa tinham tapetes com estampas coloridas e o piso era de madeira. Ela experimentava algo muito novo: estava extasiada e surpresa com o que via. Nada condizia ao que pensava do professor. Ela realmente o conhecia? Aquele lugar era confortável e empático demais para existir bem atrás de muros sem graça, altos e verdes.
Quando chegou ao quarto, a porta rangeu.
Olhando-o daquele jeito, a menina gritou.

Não foi surpresa quando o enterro não deu muita gente. O professor não tinha parentes e também não era lá muito popular. Apesar disso, parecia satisfeito com sua vida de dentro do caixão, porque sorria um sorriso feliz. A barba tinha sido feita finalmente, e seu rosto não aparentava tanta idade assim. Era como o muro verde e alto de sua casa, escondendo as maravilhas do seu rosto, assim como os olhos então fechados escondiam toda a experiência e sabedoria que havia reunido durante a vida.
A menina normal já não era mais normal, porque chorava a morte de alguém que não conhecia e que, pouco antes de sua morte, desejou conhecer. Chorava pelas pessoas barbudas, com muros altos e verdes que havia deixado de conhecer. Chorava com tristeza e dor, com pesar.  Era então, aos olhos dos outros, a menina que encontrara um velho professor morto dentro da própria casa. Para si, porém, era alguém estranha e imersa demais em verdades irreais, com a morte lhe cutucando e tocando os lábios pela primeira vez. Deixara o gosto do silêncio, o frio das manhãs e a perspicácia do olhar.
Meses depois, a casa de muros verdes e altos foi vendida. Quando o verde dos muros pareciam então mais e mais belos e sua altura gradativamente se consolidava necessária e justificável para a menina, a nova família demoliu parte do muro, tornando-o mais baixo e, em seguida, pintou de amarelo ouro.

E sem perceber, a garotinha tornou-se mulher. 

"O que a juventude tem de melhor é ser capaz de admirar sem compreender" Anatole France. 

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