terça-feira, 26 de abril de 2016

Os Sete Portais #1

A chegada

Já estava escurecendo quando entramos na estrada de terra da fazenda do avô Dito. A paisagem deserta da rodovia que por tantas horas havíamos percorrido, aos poucos dava lugar às fartas plantações de morango e laranja da propriedade. Se voltássemos o olhar na direção certa, já dava para avistar a casinha aumentar gradativamente de tamanho conforme nossa distância dela diminuía. A porteira, uma das minhas poucas memórias não distorcidas, não aparentava estar mais gasta e velha do que da última vez que a havia visto – o que me fez pensar no quanto um material pode ser resistente.  
Meus pais conversavam entretidos a respeito do casamento de um tio distante. Minha mãe dobrava o mapa que nos guiara com cuidado, para devolvê-lo ao porta luvas, e meu pai atentava-se aos retrovisores. Samuca dormia um sono profundo ao meu lado, emitindo, vez ou outra, certos murmúrios esquisitos. Eu permanecia quase que imóvel no canto esquerdo do banco de trás, pensativa. A viagem surpresa me parecia desesperadora. Estava impaciente, ansiosa, atenta a todos os detalhes. Minha família não demonstrava nenhum tipo de postura anormal, e por isso eu me questionava se o problema era comigo. Tinha passado muito, muito tempo desde a última vez.
Apesar de enrolada no cobertor do homem aranha do meu irmão e com um agasalho quente por baixo dele, eu ainda sentia frio. Desacostumara àquela brisa do campo gelada, que passava pelas frestas do vidro da minha janela e tocava meus dedos das mãos, nariz e orelhas. Os fones de ouvido soavam baixinho e não tinham a minha atenção. Dentro de mim, jaziam ruídos muito mais altos, advindos de uma sensação nova que florescia de um punhado de sentidos distintos e conectados numa espécie de bagunça mental: cheiros, imagens, sons, lembranças – vagas e desconectas. Por toda a viagem, eu havia permanecido imersa em mim mesma, esforçando-me para dar rosto ao meu avô, para dar vida a fazenda, para encontrar um modo de agarrar as memórias dos tempos da minha infância que vagavam, em partes, em meus pensamentos.
Quando o carro por fim estacionou, senti as batidas do meu coração acelerarem. Não sabia o que esperar. Estava carregada de um sentimento pesado e angustiante, sem nome. Tudo o que me vinha a cabeça eram flashbacks sem aparente explicação – uma tarde nublada e triste, uma cadeira de balanço verde água e um cheiro forte de café. Sem sentido, juntos ou separados.
Começava a chuviscar.
O Samuca tinha sido o último a descer – e minha mãe quase teve de arrastá-lo para fora do carro. Ouço-o reclamar baixinho, meio dormindo, meio acordado, enquanto ajudo meu pai com a bagagem no porta malas. Vamos e voltamos, do carro para a varanda, carregando as malas. Samuca sentara na escadinha e enterra o rosto nas mãos.
Quando minha mãe toca a campainha, eu finalmente lhe acho um pouco tensa. Talvez ela tenha hesitado, ou talvez eu tenha visto coisas. Talvez estivesse desconfortável andando de um lado para o outro, como se as pernas não fizessem parte do corpo, ou talvez só estivesse impaciente e cansada. Ainda assim, não consegui ter certeza, já que mantia o sorriso tênue nos lábios e os braços rente aos ombros. Carrego as últimas malas junto de meu pai, sentindo pingos de chuva nas costas. Analiso discretamente meus sapatos cheios de lama. Encosto ao lado do meu irmão; meu pai se junta a minha mãe, passando os braços por sua cintura. O chuvisco se transforma em uma chuva ritmada.
Esperamos em silêncio. Observo aquele espaço grande e rustico, tão diferente da agitação da cidade. Tão calmo, tão suave, tão místico. O céu, antes estrelado e azul, agora está negro. Caçoa da nossa pequenez por sua imensidão. As gotas de chuva tomam conta de tudo – e eu posso me ver como uma, molhada e levada da terra do nada a lugar nenhum.

Plin. Splash. Tic.
Plin. Splash. Tac.
Plin. Splash. Tic.
Plin. Splash. Tac.

A maçaneta então gira e emite um estalo. Voltamos nossos olhares à porta. Meus pais se afastam um do outro milimetricamente; Samuca levanta a cabeça e se vira. Quando a porta se abre, ele aparece como uma sombra. Estou curiosa para ver seu rosto, mas não consigo enxerga-lo de onde estou.
Minha mãe o abraça, carinhosa.
A chuva fina já é tempestade.
“Como vai, Sabri querida?” murmura. Sua voz é baixa, porém rouca e cálida, acolhedora. Algo estranho me acontece dentro do peito, pois ela ecoa pela varanda e acalma meu coração. Então eu vejo seu rosto, seus olhos verdes e doces, sua barba branca. Vejo seus cabelos ralos, suas mãos enrugadas, sua bengala marrom. Vejo sua boca rachada, suas orelhas grandes, sua pele enrugada. Vejo-o e lembro de vê-lo! Vejo e lembro de ouvir suas histórias na varanda, do cheiro de tabaco das suas camisetas, do gosto do ovo mexido. Lembro de como ele me abraçava, me olhava, me ensinava a ler. Sinto vontade de chorar, mas não o faço. Minha mãe é vaga em sua resposta, mas vejo que deseja contar-lhe tudo o que tem vivido. Não entendo porque não o faz, e desejo entender desesperadamente.
Avô Dito cumprimenta meu pai com um aperto de mão, depois lhe sorri. Meu pai sorri um sorriso fraco de volta. Em seguida convida-os para o jantar, que, em suas palavras, é o mais especial que havia feito em muito tempo. Vejo minha mãe hesitar outra vez. Percebo que ele não está sozinho, pois uma luz surge de um candelabro, e alguém o segura. É um garoto mais ou menos da minha idade e nossos olhares se cruzam. Sinto minhas bochechas corarem e desvio.
 “Desculpe a gente Seu Dito, mas não vamos conseguir ficar para o jantar” Meu pai responde. “Talvez quando voltarmos para buscar os garotos”.
O rosto de Avô Dito parece se iluminar. “Oh! É mesmo!” murmura. “Os garotos! Onde estão?”. E então sai do breu. Samuca levanta e caminha até ele. Sigo-o.
Vejo os olhos dele brilharem de felicidade. Ele toca nossas cabeças, nossos rostos, olhos, bocas, cabelos. Samuel parece ligeiramente assustado e desnorteado, mas eu retribuo o gesto sorrindo o mais gentilmente que posso. “Como vocês cresceram!” fala, animado. “Nem acredito que estão aqui” sinto minhas mãos suadas. “Temos muito o que fazer para recuperar esse tempo perdido que antes…” Então o garoto lhe lança um olhar intimista e de autoridade. Avô dito silencia de repente. “Oh, claro” fala. “Este é Israel, meu ajudante” apresenta.
Oh, Israel. Ajudante. Estou constrangida. Mesmo assim, volto a minha atenção para o garoto. Consigo então enxerga-lo bem. Seus olhos são pretos, assim como as roupas pesadas que usa (um casaco grande, um cachecol feito a mão, uma calça de lã e um par de tênis gastos). Os cabelos são crespos e loiros, bastante bagunçados. O rosto é fino, com nariz pontiagudo e boca contornada. É magrelo e alto, meio desengonçado. Tem mãos grandes e dedos longos.
“Puxa, isso é ótimo Seu Dito” diz papai, em um tom de voz leve. “Espero que os dias que virão sejam proveitosos”.
“Serão” Assinto. Todos me fitam, surpresos. Não ligo. Avô dito sorri.
“Bem, nós devemos ir” diz mamãe. Quando vou dizer que talvez seja melhor esperar a chuva passar, percebo que ela diminuiu.
“Espero que vocês fiquem mesmo para o jantar quando voltarem” Avô Dito diz. Meus pais assentem enquanto se despedem de nós. Nos abraçam forte e nos dão beijos.
“A benção” pedimos eu e Samuel. Então eles nos abençoam e entram no carro.

“Mas que tempo doido” diz o Avô Dito, depois que nossos pais já estão quase que sumindo de nossas vistas. “Vamos entrar antes que comece a chover forte de novo”. E aponta para que nós sigamos Israel para dentro de sua casa.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário