A chegada
Já estava escurecendo quando entramos na
estrada de terra da fazenda do avô Dito. A paisagem deserta da rodovia que por
tantas horas havíamos percorrido, aos poucos dava lugar às fartas plantações de
morango e laranja da propriedade. Se voltássemos o olhar na direção certa, já dava
para avistar a casinha aumentar gradativamente de tamanho conforme nossa
distância dela diminuía. A porteira, uma das minhas poucas memórias não
distorcidas, não aparentava estar mais gasta e velha do que da última vez que a
havia visto – o que me fez pensar no quanto um material pode ser resistente.
Meus pais conversavam entretidos a
respeito do casamento de um tio distante. Minha mãe dobrava o mapa que nos
guiara com cuidado, para devolvê-lo ao porta luvas, e meu pai atentava-se aos
retrovisores. Samuca dormia um sono profundo ao meu lado, emitindo, vez ou
outra, certos murmúrios esquisitos. Eu permanecia quase que imóvel no canto esquerdo
do banco de trás, pensativa. A viagem surpresa me parecia desesperadora. Estava
impaciente, ansiosa, atenta a todos os detalhes. Minha família não demonstrava
nenhum tipo de postura anormal, e por isso eu me questionava se o problema era
comigo. Tinha passado muito, muito tempo desde a última vez.
Apesar de enrolada no cobertor do homem
aranha do meu irmão e com um agasalho quente por baixo dele, eu ainda sentia frio.
Desacostumara àquela brisa do campo gelada, que passava pelas frestas do vidro da
minha janela e tocava meus dedos das mãos, nariz e orelhas. Os fones de ouvido soavam
baixinho e não tinham a minha atenção. Dentro de mim, jaziam ruídos muito mais
altos, advindos de uma sensação nova que florescia de um punhado de sentidos
distintos e conectados numa espécie de bagunça mental: cheiros, imagens, sons,
lembranças – vagas e desconectas. Por toda a viagem, eu havia permanecido imersa
em mim mesma, esforçando-me para dar rosto ao meu avô, para dar vida a fazenda,
para encontrar um modo de agarrar as memórias dos tempos da minha infância que
vagavam, em partes, em meus pensamentos.
Quando o carro por fim estacionou, senti
as batidas do meu coração acelerarem. Não sabia o que esperar. Estava carregada
de um sentimento pesado e angustiante, sem nome. Tudo o que me vinha a cabeça
eram flashbacks sem aparente explicação – uma tarde nublada e triste, uma
cadeira de balanço verde água e um cheiro forte de café. Sem sentido, juntos ou
separados.
Começava a chuviscar.
O Samuca tinha sido o último a descer – e minha
mãe quase teve de arrastá-lo para fora do carro. Ouço-o reclamar baixinho, meio
dormindo, meio acordado, enquanto ajudo meu pai com a bagagem no porta malas. Vamos
e voltamos, do carro para a varanda, carregando as malas. Samuca sentara na
escadinha e enterra o rosto nas mãos.
Quando minha mãe toca a campainha, eu
finalmente lhe acho um pouco tensa. Talvez ela tenha hesitado, ou talvez eu
tenha visto coisas. Talvez estivesse desconfortável andando de um lado para o
outro, como se as pernas não fizessem parte do corpo, ou talvez só estivesse
impaciente e cansada. Ainda assim, não consegui ter certeza, já que mantia o
sorriso tênue nos lábios e os braços rente aos ombros. Carrego as últimas malas
junto de meu pai, sentindo pingos de chuva nas costas. Analiso discretamente
meus sapatos cheios de lama. Encosto ao lado do meu irmão; meu pai se junta a
minha mãe, passando os braços por sua cintura. O chuvisco se transforma em uma
chuva ritmada.
Esperamos em silêncio. Observo aquele
espaço grande e rustico, tão diferente da agitação da cidade. Tão calmo, tão
suave, tão místico. O céu, antes estrelado e azul, agora está negro. Caçoa da
nossa pequenez por sua imensidão. As
gotas de chuva tomam conta de tudo – e eu posso me ver como uma, molhada e levada da terra do nada a
lugar nenhum.
Plin. Splash. Tic.
Plin. Splash. Tac.
Plin. Splash. Tic.
Plin. Splash. Tac.
A maçaneta então
gira e emite um estalo. Voltamos nossos olhares à porta. Meus pais se afastam
um do outro milimetricamente; Samuca levanta a cabeça e se vira. Quando a porta
se abre, ele aparece como uma sombra. Estou curiosa para ver seu rosto, mas não
consigo enxerga-lo de onde estou.
Minha mãe o abraça,
carinhosa.
A chuva fina já é
tempestade.
“Como vai, Sabri
querida?” murmura. Sua voz é baixa, porém rouca e cálida, acolhedora. Algo
estranho me acontece dentro do peito, pois ela ecoa pela varanda e acalma meu
coração. Então eu vejo seu rosto, seus olhos verdes e doces, sua barba branca.
Vejo seus cabelos ralos, suas mãos enrugadas, sua bengala marrom. Vejo sua boca
rachada, suas orelhas grandes, sua pele enrugada. Vejo-o e lembro de vê-lo!
Vejo e lembro de ouvir suas histórias na varanda, do cheiro de tabaco das suas
camisetas, do gosto do ovo mexido. Lembro de como ele me abraçava, me olhava,
me ensinava a ler. Sinto vontade de chorar, mas não o faço. Minha mãe é vaga em
sua resposta, mas vejo que deseja contar-lhe tudo o que tem vivido. Não entendo
porque não o faz, e desejo entender desesperadamente.
Avô Dito cumprimenta
meu pai com um aperto de mão, depois lhe sorri. Meu pai sorri um sorriso fraco
de volta. Em seguida convida-os para o jantar, que, em suas palavras, é o mais
especial que havia feito em muito tempo. Vejo minha mãe hesitar outra vez. Percebo
que ele não está sozinho, pois uma luz surge de um candelabro, e alguém o
segura. É um garoto mais ou menos da minha idade e nossos olhares se cruzam.
Sinto minhas bochechas corarem e desvio.
“Desculpe a gente Seu Dito, mas não vamos
conseguir ficar para o jantar” Meu pai responde. “Talvez quando voltarmos para
buscar os garotos”.
O rosto de Avô
Dito parece se iluminar. “Oh! É mesmo!” murmura. “Os garotos! Onde estão?”. E
então sai do breu. Samuca levanta e caminha até ele. Sigo-o.
Vejo os olhos dele
brilharem de felicidade. Ele toca nossas cabeças, nossos rostos, olhos, bocas,
cabelos. Samuel parece ligeiramente assustado e desnorteado, mas eu retribuo o
gesto sorrindo o mais gentilmente que posso. “Como vocês cresceram!” fala,
animado. “Nem acredito que estão aqui” sinto minhas mãos suadas. “Temos muito o
que fazer para recuperar esse tempo perdido que antes…” Então o garoto lhe
lança um olhar intimista e de autoridade. Avô dito silencia de repente. “Oh,
claro” fala. “Este é Israel, meu ajudante” apresenta.
Oh, Israel. Ajudante.
Estou constrangida. Mesmo assim, volto a minha atenção para o garoto. Consigo
então enxerga-lo bem. Seus olhos são pretos, assim como as roupas pesadas que
usa (um casaco grande, um cachecol feito a mão, uma calça de lã e um par de
tênis gastos). Os cabelos são crespos e loiros, bastante bagunçados. O rosto é
fino, com nariz pontiagudo e boca contornada. É magrelo e alto, meio desengonçado.
Tem mãos grandes e dedos longos.
“Puxa, isso é
ótimo Seu Dito” diz papai, em um tom de voz leve. “Espero que os dias que virão
sejam proveitosos”.
“Serão” Assinto.
Todos me fitam, surpresos. Não ligo. Avô dito sorri.
“Bem, nós devemos
ir” diz mamãe. Quando vou dizer que talvez seja melhor esperar a chuva passar,
percebo que ela diminuiu.
“Espero que vocês
fiquem mesmo para o jantar quando voltarem” Avô Dito diz. Meus pais assentem
enquanto se despedem de nós. Nos abraçam forte e nos dão beijos.
“A benção” pedimos
eu e Samuel. Então eles nos abençoam e entram no carro.
“Mas que tempo
doido” diz o Avô Dito, depois que nossos pais já estão quase que sumindo de
nossas vistas. “Vamos entrar antes que comece a chover forte de novo”. E aponta
para que nós sigamos Israel para dentro de sua casa.
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