A menina tinha rosto redondo, braços curtos e fios de cabelo indecisos, que brincavam de trocar de lado com o vento. Possuía olhos amendoados e fundos com vida própria. Atentos, intensos e serenos por trás de sua coloração castanha-escura. Sorria frequentemente, um sorriso misterioso e tênue. Era tímida e despreocupada, de um jeito singular e único. Se ria, o riso soava como de criança, divertido e melodioso, mas sumia rapidamente ao meio das vozes dos amigos (fator instigante e encantador). As orelhas eram tortas se comparadas bem de perto, assim como os seios fartos, e os dois extremos da testa avantajada. Entretanto, o nariz equilibrava o rosto como um todo. Parecia preferir os cabelos soltos, que iam do topo da cabeça até pouco abaixo dos ombros, exibindo seu tom castanho-escuro forte. Constantemente utilizava as mãos para falar - mãos grandes e fofas, longe de aparentarem suavidade, mas que ainda assim, conseguiam ser delicadas - e puxava um pouco os fonemas com r e s, já que tinha vindo do interior. Vestia camisetas largas, quase sempre lisas, de listras ou com estampas discretas. Gostava de bermudas confortáveis, e aparentava ter uma queda pelo tom de azul, que combinava com sua personalidade tranquila e perspicaz. Carregava para todo lado uma velha mochila vermelha e preta nas costas, e deixava um guarda-chuva branco em um compartimento de redinha, exposto. Tal objeto lhe parecia sagrado: carregava mesmo nos dias de sol - e sempre tinha um reserva para certas pessoas esquecidas. Era prevenida. Prevenida duplamente. Farta e cheia, de estatura média e pele bem branca, a menina parecia feita de uma junção perfeita de estereótipos esquisitos, pensados, calculados, amarrados.
Era linda.
Todos os dias, escutava o despertador apitar as sete e quinze da manhã e ficava rolando pela cama, com a cabeça enterrada no travesseiro e os lençóis esparramados em seu entorno. Perguntava-se se deveria abrir os olhos e iniciar o dia, ou se poderia dormir por mais cinco minutinhos (a decisão de continuar ali era toda dela, pois morava sozinha já a algum tempo - fato que, aliás, constantemente a assustava). Então costumava deixar que seu cérebro assimilasse o que estava acontecendo, mantendo-se imóvel e estática. Durante sua inercia, a menina brincava de ouvir. Ouvia o ventilador emitir seu mantra costumeiro, o gato arranhar a porta do quarto querendo entrar ou sair, o quadro tombando e empurrando o armário bambo de um lado para o outro, o motor fundido do carro do vizinho. Ouvia seu próprio som interior, um som circular e forte, o som do seu silêncio. Provavelmente, tal exercício tenha lhe propiciado a desenvoltura de uma habilidade interessante, apesar de incompleta: era cada dia melhor em sentir antes de racionalizar, escutar o que não era dito através de palavras e atentar aos pequenos detalhes que lhe provocavam sentimentos. Em poucos minutos, ouvia em cada nova manhã, a movimentação e os mecanismos do dia que viria em seguida, e ao abrir os olhos, era muito mais fácil e fascinante desvendar as maravilhas particulares da vida.
Já que ainda não dirigia, a garota andava de oito a dez quarteirões todos os dias, da casa para a faculdade e da faculdade para casa. Quando cruzava a guarita do condomínio, havia ainda mais caminho a percorrer, assim como a catraca da faculdade era só o indício da proximidade da sala de aula. Porém, isso não parecia incomodá-la. Ela tinha um jeito interessante de caminhar, pisando o chão com cuidado e olhando sempre para baixo. Caminhava lentamente, construindo uma trilha ritmada através dos sapatos gastos. Apesar de cansativa, a caminhada lhe parecia sempre mais bela e surpreendente. Beleza essa exótica, pouco explicável e inquietante. Surpreendente porque vinha do vulgar, selvagem e natural, aquilo que passava batido para a maior parte das pessoas e, de tão comum, era extraordinário.
A menina tinha um ponto favorito no trajeto: antes de virar a última esquina e continuar infinitamente reto, havia um terreno com muros altos cobertos de trepadeiras. Essas trepadeiras, combinadas às árvores propositalmente plantadas nos vãos do paralelepípedo da calçada, formavam um túnel denso, fechado e fresco, por onde a garota dançava a passos bem lentos diminuídos gradativamente pela velocidade de seus pés. Já na primeira vez que o atravessara, sentira que aquele lugar era parte de si, único no mundo e incompreensível para pessoas que estavam ocupadas demais com o que chamavam de vida real - o trabalho, o tempo, o dinheiro, as discussões de ego. Ali era para ela um lugar dos sonhos, dos sentidos, da imaginação, sua verdadeira definição do real. Costumava tratá-lo como seu segredo particular. Apelidou-o de País das Maravilhas, pois lembrou que Alice, de Lewis Carroll, também possuía seu lugar especial que não era visto por mais ninguém (e talvez pudesse ser a única pessoa no mundo a entendê-la). Assim como Alice, a garota que brincava de ouvir também tinha suas referências de lagartas sábias e gatos de sorrisos assustadores - e, por mais que não soubesse ainda, de chapeleiros malucos.
Por volta do meio dia, o sol irradiava seu brilho sob as árvores do País das Maravilhas e as sombras que se formavam por ali tornavam-se vivas e independentes. Por alguma razão, o ar parecia mais puro, os pássaros cantavam de uma forma distinta e prolongada, e o vento se personificava no sentimento de paz. Se numa manhã as folhas das árvores estavam mais verdes e firmes, noutra estavam mais ocre, penduradas de mal jeito em galhos secos. Algumas árvores eram frutíferas, espalhando sementes pelo chão, enquanto outras presenteavam a garota com flores de diversas cores. Era interessante notar que as árvores floresciam em tempos diferentes e de maneiras diferentes, tais como as pessoas. Umas no outono, outras na primavera e outras até de ano em ano - mas todas com a mesma capacidade de deixar sua identidade e presença marcada na natureza e na história de algum modo.
A menina não perguntava às flores que caminho deveria seguir, como fazia Alice à Lagarta, mas perguntava quando iria florescer. Se iria florescer. (os botões de flores da garota, ainda não pareciam nem ter brotado, quanto mais sido abertos). As árvores pareciam seguras de suas belezas, cores, formas. Pareciam certas sobre o futuro, sobre a vida e a morte, sobre as essências e sentidos de existência. Pareciam ter certezas sobre tudo, e não demonstravam preocupações.
Não era assim com a menina que escutava, e isso a deixava inquieta.
Por vezes, amanheciam dias nublados ou chuvosos. Eram dias mais difíceis de ouvir, ver e sair da cama. O caminho no País das Maravilhas acompanhava o ritmo temporal, mudando sua esfera de energia e de foco. O túnel ficava mais escuro que o normal, e as árvores faziam sombras esquisitas. Sombras que não davam vida, mas provocavam medo. Dificilmente o vento provocava paz. Quando chovia, a calçada ficava escorregadia e as flores perdiam pétalas de montes, que grudavam nas solas dos tênis. Ainda assim, ao tempo que era sombrio, o caminho ainda era o País das Maravilhas, único no mundo, e despertava vivências intensas para a menina. Atravessando-o em um temporal, parecia seguir seu sorriso no escuro como Alice fazia com o Gato de Cheshire, e parecia subir mais um degrau na busca do florescer - daqueles degraus que vemos longe demais nos dias ensolarados e que se aproximam da gente em dias mais escuros. Em nenhum momento, deixava de ser belo. Quanto mais selvagem e molhado, mais belo era.
Quando a chuva passava e o sol voltava a brilhar, o cheiro de terra molhada que absorvia mais nutrientes que antes e a imagem dos velhos componentes do todo dando lugar aos novos era intensa e fiel.
O País das Maravilhas se revolucionava, tornava-se mais puro, mais verdadeiro.
Tornava-se mais próximo da garota que ouvia.
(Havia, o tempo todo, outra garota nessa história, mas ela aparece apenas agora, por bondade do autor e somente para o leitor. Isso porque a garota que ouvia, mesmo sendo extremamente observadora e perspicaz, ainda era humana e não enxergava a totalidade do mundo a sua volta. Imersa em suas reflexões e desafios interiores, com sua ânsia em florescer e seus sentimentos confusos, não se deixava conhecer, interagir, viver... amar).
A garota que ouvia não conhecia seu Chapeleiro Maluco. Mas ele existia. Andava sempre há alguns metros de distância dela, usando um chapéu cinza escuro engraçado. Observava de longe a experiência que ela tinha com o País das Maravilhas, contemplando suas expressões corporais e faciais, seus murmúrios e movimentos. Achava a garota uma espécime rara e exótica, e compartilhava com ela a sensibilidade aos detalhes. Enxergava nela seu próprio País das Maravilhas. Cruzava o túnel de árvores sempre no intuito de sentir os sentimentos que eram sentidos pela garota que ouvia, mas tudo o que conseguia em resposta era o coração acelerado e um cheiro interessante de felicidade. Não sabia ao certo quando a menina que ouvia lhe tinha tomado o coração, sem licença para entrar em sua vida, mas certamente o tinha feito. Mesmo a partir do processo repentino, desejava que ela continuasse lá, regando os sentimentos que lhe provocava. Aos olhos de seu Chapeleiro, a menina que ouvia era um ramalhete perfeito de hortênsias, para a hora do chá, para seus desaniversários, para corridas malucas, para toda a vida.
Era um Chapeleiro Maluco porque amava.
(De Ab para I)
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