Parte I – “O antes, do antes, do antes”
Quando Alice abriu os olhos, percebeu que
não estava olhando para o teto do seu quarto. O seu teto tinha o acabamento dos
cantos um pouco tortos e algumas rachaduras perto do lugar em que a lâmpada ficava
encaixada – definitivamente faltavam detalhes. Perguntou-se onde diabos estava.
O sol ofuscava seu rosto. E apenas quando ouviu o som estridente dos martelos e
serras do outro lado das paredes, que se lembrou: tinha se mudado há dois dias.
“A cama deve vir logo” murmurara o pai,
confiante, detrás do colchão azul que tomava mais da metade do espaço do
elevador de serviço. A menina acabara de apertar o botão do vigésimo segundo
andar – o seu andar. Torcia para que chegasse logo, antes que morresse comprimida
por falta de espaço ou sufocada por falta de oxigênio. “Enquanto isso você terá
que dormir nesse senhorzão aqui”.
Se alguém ouvisse os termos antiquados que
o pai usava, com certeza refletiria bastante antes de começar uma conversa com
qualquer um dos dois. Mas não importava, porque o pai estava feliz – e então Alice
estava feliz também. Os últimos tempos haviam sido difíceis. Psicólogos,
remédios, recaídas. Ela continuava a se sentir confusa e triste. Não queria ir
para lugar nenhum. Não queria estar com ninguém. Quando tinha crises muito
fortes, o pai chorava escondido. E ela achava que isso também era sua culpa.
Diziam para ela o tempo todo que não tinha motivos para ficar triste. Ninguém
entendia. Não era uma tristeza qualquer, era uma tristeza da alma. Diziam que ela
tinha que recomeçar. Ninguém entendia. Ela não tinha forças, não conseguia ao
menos querer ter forças.
“E
você sabe, qualquer coisa, deve falar com a sua tia, no....” Por isso, ver o
pai tagarelar sem parar era o melhor que poderia acontecer.
“... andar de baixo, aham” completou a menina,
enquanto era atirada para fora pelo colchão, em direção à porta entreaberta e malconservada
do elevador. “Pai, o senhor já disse isso um milhão de vezes”. Beijou-o
carinhosamente.
As costas doíam pelas noites mal dormidas
no “senhorzão”. As noites eram frias e as roupas de cama não conseguiam esquentá-la
– tudo bem que isso era culpa da mania que tinha de sempre atirar tudo para os
lados e acabar encolhida em posição fetal. Sempre demorava a dormir, acordava
cedo. O pai ligava três vezes por dia para checar se ela estava bem. A menina
se via repetindo que sim. E, para sua surpresa, era a verdade. Um dia, ela
tinha achado a lista. Amassada e suja, dentro de um velho caderno que
despencara do seu armário. E então ela tinha lido. Relido. Deparara-se com
sentimentos ressurgindo dentro de si. Tinha chorado, chorado muito. Eram
sentimentos bons.
Alice checou o celular. Nove e quinze.
Levantou, calçou os chinelos, abriu as frestas da janela que ainda estavam
fechadas. Sentiu fome. Sabia que não tinha comida nos armários, mas mesmo assim
foi na cozinha olhar. Encontrou alguns pedaços de pão velho, um pacote de miojo
pela metade e duas latas amassadas de atum. Na geladeira só água, dois potes de
danone e uma garrafa aberta de suco de uva. Lembrou que na esquina de seu
prédio, tinha uma padaria – uma padaria das boas. Não era longe, não daria
trabalho: tinha que se trocar, descer os doze andares do prédio e caminhar alguns
metros. Pensou que tudo bem, que era bom para começar – e foi de volta para a
sala revirar a mala atrás de uma roupa qualquer que servisse.
Do outro lado da cidade, Max aguardava
sentado em uma cadeira bonita e acolchoada, ao lado de homens que nunca havia
visto na vida. Estava muito ansioso – e todos a sua volta pareciam mais
confiantes. Talvez fosse a vantagem invisível e massacrante que tinham sobre
ele. Suas pernas balançavam em um impulso inconsciente e as mãos suavam mais do
que normalmente. Deveria ter se acostumado com o antes, já que era a terceira
entrevista que fazia em menos de uma semana. Mas não tinha. Rabiscava
freneticamente a última folha do caderno. Fazia uma lista.
“Número 712” ouviu a mulher bonita chamar.
Todos voltaram os olhos para seus papéis. Era ela que o recepcionara, que
chamara os outros nomes, que conduzia os entrevistados para o outro lado da
porta amarela. O número chamado era o número do papel de Max – finalmente
chegara sua vez. Então ele enfiou o caderno na mochila, colocou-a nas costas e
se pôs a andar. Seus passos eram ritmados e ligeiros, pois tinha a impressão de
que estava sendo observado, analisado de cima a baixo. Enquanto caminhava,
prestava atenção no som da madeira velha rangendo debaixo de seus pés. Deixou que
a moça bonita o conduzisse por um longo corredor estreito. Corredor esse que
deu em uma sala arrumada, com ar condicionado e flores murchas na janela.
“Por favor, entre e sente-se” disse uma
voz grave, masculina. Max ouviu o fechar da porta atrás de si e conduziu-se
para a poltrona indicada. O dono da voz era um senhor de meia idade, gordo e grisalho,
que usava um ostensório engraçado e óculos fundo de garrafas. Ele tinha em mãos
envelopes e papéis sérios, daqueles de empresas grandes. Max hesitou e por fim
decidiu não oferecer uma das mãos em cumprimento. “Você deve ser Maxwell Cortez”.
“Sim senhor” Max assentiu, enquanto ouvia
seu sobrenome sendo pronunciado errado, em um tom de voz de desprezo. Sempre
que alguém pronunciava seu último sobrenome, o espanhol, pronunciava errado,
com a tônica no “ez” – o certo era no “or”. Porém, não achou elegante corrigir
o homem que, se estivesse com sorte, seria seu futuro chefe. Então ignorou. As
perguntas começaram e não pararam nunca mais. Sua idade, referências, especialidades,
pontos fortes, pontos fracos: queriam informações sobre tudo. Coisas que Max
não sabia ao certo como deveria responder (ou porque as estava respondendo),
mas o fazia com honestidade, simplicidade e maestria. O garoto podia ouvir o
tic-tac do relógio analógico na parede, provocando-o. O tempo parecia não
passar.
“Muito bem Cortez, nós entraremos em
contato” tinha sido a frase da despedida, de mais um emprego que escorregava de
suas mãos. Max sentiu-se mais decepcionado consigo mesmo do que com a empresa.
Expectativas utópicas. Sentia o sangue correndo quente em suas veias, ao passo
que ligava a moto e ajeitava o capacete na cabeça. De novo, não tinha
conseguido. Quando diziam que entrariam em contato, era porque algo tinha dado
errado. Estava começando a acreditar que não era bom o suficiente.
Não sabia mais o que fazer. Tinha orgulho
de ter terminado a escola, apesar das dificuldades que enfrentara. Mesmo assim,
teve que deixar o sonho da fotografia para trás. Só sabia ser motoboy, e era
bom no que fazia. Não era bom em mais nada. Queria ajudar a mãe, queria ser útil,
mas só sabia dar despesa. Não se importava em aprender qualquer ofício, nem que
tivesse que ser humilhado… queria a oportunidade! Nem isso! Agora a irmãzinha,
sofrendo sem entender. Não eram vistos como seres humanos. O olhar do pai, em
um caixão, demonstrava o poder da sociedade racista.
Era preto mesmo, e daí?
Depois de atravessar a cidade em um
trânsito caótico e ficar estacionado na frente do seu prédio por mais de dez
minutos, Max se viu dando voltas sem rumo pelo seu quarteirão. As lágrimas
caiam aos montes por baixo do capacete e embaçavam a viseira. O vento batia em
seu corpo e ele gostava – sentia-se parte de algo.
Eram dez e dez quando o garoto estacionou
na frente da padaria do seu Juca. Estava mais consolado e tranquilo, apesar de
continuar entristecido pela entrevista injusta. Queria terminar a lista – tinha
chegado a uma conclusão a respeito do restante dos seus tópicos –, mas não
queria terminar em casa. Pensou também que talvez Olívia gostasse de ganhar um
doce ou algum mimo de irmão, já que passara a manhã sem a atenção que lhe era
merecida, com a vizinha costureira. Escolheu um chocolate crocante, daqueles
que ela pedia sempre que via o comercial na televisão. Pediu um café forte
também, sem açúcar. Cumprimentou o dono da padaria com um aceno, sentou em uma
mesa de canto. Enquanto
esperava o pedido, tirou o caderno e a caneta de dentro da mochila. Com os fones
que tocavam Beatles enterrados nas orelhas, Alice passou por Max com a sacola
de compras nas mãos.
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