domingo, 21 de fevereiro de 2016

Destino - Um Emaranhado de Conexões #1

Capítulo um
Efeitos Colaterais, Tsurus e Girafas de Bexiga

Bárbara Lins sempre amou festas de quinze anos. Sempre. Por toda a sua vida, tinha sonhado com o dia em que finalmente completaria seu décimo quinto aniversário e usaria o vestido branco mais bonito de todas as lojas de vestidos da cidade. Aproveitaria o dia de debutante na companhia de seus amigos, dançaria valsa com seu príncipe encantado e faria um loooongo discurso de agradecimento. Seria lembrada com louvores. Nesse dia, todos a notariam de uma maneira especial.
Porém, quando a idade certa estava prestes a bater em sua porta, a menina deu-se conta de que seus devaneios eram apenas fantasias de um sonho distante. Os pais passavam por graves problemas financeiros e não tinham condições de lhe proporcionar o que era tão almejado. Nem tinham carro ou casa própria e, se não fosse por sua bolsa de estudos integral, tão pouco poderiam pagar a mensalidade do colégio em que estudava. Quando a menina especulava a respeito de festas, presentes ou viagens, a resposta que recebia era a mesma: “Querida, precisamos cortar os gastos supérfluos”. Babí via o dia perfeito cada vez mais distante de suas possibilidades. O que seus pais não entendiam é que sua festa dos sonhos não era em gasto supérfluo. De jeito nenhum.
Fazendo jus aos estudos de Darwin, não teve outra saída a não ser se adaptar. Aprendera gradativamente a bolar desculpas convincentes aos amigos e aos cobradores de aluguel. Tinha um cofrinho de economias no quarto, e nele acumulava o dinheiro que conseguia com seus trabalhos informais. Assim, comprava o que julgava necessário para estar à altura de quem pensava que devia ser. Se esforçava muuuito para lembrar os horários de ônibus, mesmo com sua terrível memória a curto prazo, para conseguir manter a discrição. Nos lugares que ia, era a primeira a chegar e a última a sair, além de acostumar descer sempre um ponto antes, por garantia, para terminar o percurso a pé. Sentia-se extremamente envergonhada pela posição social da família.
O momento não foi dos melhores. Foi na pista de dança, quando o barman gostoso balançou sua cabeça cheia de vodka de um lado para o outro enquanto o DJ tocava Bad Romance da Gaga. Não tinha bebido muito, algumas batidas talvez. Estava na festa dos sonhos, dos deuses, dos luxos. Tudo era muito lindo. Seria perfeito se Barbara não soubesse que não era a aniversariante. E nnunca seria. A aniversariante era Bia, sua melhor amiga. Por que a amiga tinha tanto e outros como ela não tinham nada? Em meio àquela gente, com luzes piscando e olhar embaçado, Babi sentiu-se constrangida, envergonhada, triste, deprimida, amarga. Tudo junto. Como se aquele mundo não fosse o mesmo mundo que ela vivia. Assim, enquanto a música tocava e as pessoas se entrelaçavam umas nas outras dentro do salão, a menina se esquivou de fininho pelos cantos, em direção à parte externa, se esforçando ao máximo para que suas lágrimas não despencassem através das bochechas. “Mas que droga Babi” pensou. “Vai borrar toda a merda da maquiagem”.
A passos largos e bambos, ela seguiu em frente sem destino certo. Estava irritada consigo mesma por chorar. Seus pés doíam mais do da última vez – e era por isso que raramente usava sapatos de salto alto:  quando usava, tinha que lidar com aquela dor chata nos pés. Passou pela porta de entrada do buffet, cruzou o laguinho. Não enxergava mais que borrões do asfalto pedregoso e desgastado. A música aos poucos ficava para trás, ao tempo que tornava-se um emaranhado de ruídos finos e recorrentes.
Quando avistou o coreto, não pensou duas vezes: seria seu refúgio. Estava apagado, mas a luz da lua não o deixava no breu completo. Era grande e muito bonito. Os pilares nitidamente faziam referência a obras renascentistas, uma arquitetura refinada. Babí logo se lembrou dele no álbum de fotos da amiga. Pensou como teria sido incrível usá-lo como cenário de suas próprias fotos. E então sentiu mais e mais lágrimas descerem pelo rosto, em um fluxo intenso e interminável. Mas, de repente, não importava se elas caíam ou deixavam de cair. Não importava mais se elas borravam a maquiagem. Simplesmente não importava. Nada mais importava no mundo para Barbara Lins naquele momento. Isso porque ela nunca tiraria fotos em um coreto ou dançaria valsa com um príncipe encantado. Ela nunca usaria o vestido mais bonito dos vestidos. Nunca faria discursos, nunca seria notada. Nunca teria sua festa dos sonhos.
Ouviu-se soluçar. Arrancou os sapatos. Viu a bolha de sangue escancarada no calcanhar. Era enorme. Com certeza não voltaria para a festa. Pelo menos, não calçada, não com o coração inteiro e não sem algo para esconder a cara inchada. Prendeu os cabelos em um coque e ergueu a barra do vestido. A escadaria não tinha muitos degraus. Enquanto subia, torcia para que o coreto estivesse vazio. Não porque se incomodava que as pessoas lhe vissem, mas para que pudesse estar realmente sozinha – sentia-se camuflada entre as pessoas nas multidões.
Todavia, com a sorte que tinha, o lugar já estava ocupado. Percebeu sua presença de súbito, assim que pôde contemplar o coreto como um todo. Sentiu o coração na garganta no momento em que o viu, de trajes sociais, encostado em um dos pilares mais distantes de si. Tinha achado que sua situação não podia piorar. Mas podia, afinal. Se encontrava dificuldade em suportar apenas uma de suas dores por vez, seria capaz de suportar duas, simultaneamente? Desejou do mais profundo de seu ser que qualquer outra pessoa estivesse ali. Qualquer uma.
“O que faz aqui?” Murmurou num impulso, sem pensar no depois: o que faria, o que diria, como diria, como se explicaria, com que entonação de voz. Estava tão vulnerável que não conseguiu ativar seu alerta vermelho a tempo. Jogou toda a racionalidade para o espaço. Para sua surpresa, o garoto continuou virado de costas, imóvel, com o terno mal colocado e o cabelo bagunçado. Babí sabia que ele não gostava de terno, mas tal fato não significava que não ficasse bem. Principalmente de costas, com seus ombros magrelos e ossudos devidamente acomodados. “Não pense nos ombros”. Advertiu a si mesma. Não podia acreditar no que lhe acontecia.
Mesmo sabendo que não deveria, resolveu tentar uma aproximação cautelosa – era fraca quando o assunto era ele. Logo que o cheiro de álcool chegou às suas narinas, a menina entendeu.
“Você é burro ou o que?” bufou Babí, irritada, colocando os sapatos no chão para que suas mãos ficassem livres. “Você sabe que não pode com bebida, J” disse a menina, quando lhe tomou pelos braços instáveis, forçando o corpo grande do amigo para trás. Queria girá-lo e fazê-lo ficar de frente para si. Era difícil. Não sabia que alguém podia ser tão pesado. “Você quer ficar que nem o seu pai?” murmurou acusatória – e logo em seguida se arrependeu. Normalmente, Babí se policiava para não falar a respeito do pai de João, principalmente quando ele bebia. Aquela era uma história triste de ouvir – e sendo assim, presumia que era mais triste ainda fazer parte dela. Porém, naquela noite, seus sentimentos estavam todos misturados, dançando pelo corpo. Ela não sabia muito bem o que estava fazendo ou o porquê o destino havia lhe enviado ali (justo ela!). Não costumava tocar nas mãos dele ou segurar seu rosto, pois conhecia o efeito que desencadeava, mas lá estava ela, tocando e segurando. Caloroso, com texturas engraçadas, era assim que seus dedos o liam. Mãos pequenas e enrugadas, bochechas redondas demais. Não ousava chegar tão perto, contemplá-lo por muito tempo. O corpo respondia com arrepios constrangedores, o coração começava a cambalear. Eram inúteis as tentativas de ignorar seus sentimentos aflorados.
Ele a fitou com os olhos entreabertos, murchos. As pálpebras estavam tortas, torcidas para os lados. Babí notou que tinha alguns fios de cabelo da franja grudados na testa, como quando jogava futebol. As orelhas estavam suadas, melecadas e vermelhas. Do nariz escorria sangue. “Meu pai tá morto, Ba” sussurrou, seco.
Ouvir tais palavras foi um tiro certeiro em seu coração.
E então ela respirou profunda e lentamente por alguns instantes.
 “É. Ele tá morto sim” balbuciou em resposta, com toda a coragem e força que conseguiu reunir. Achava-se no dever de falar ao amigo o que precisava ouvir. “E você quer que eu te lembre por que?” Seu tom de voz era duro e autoritário. Encararam-se. Os olhos castanho-claros de João traziam um olhar estranho à tona, que Babí nunca havia visto. Um olhar misturado: dor, surpresa, tristeza... admiração talvez. A menina pensou que desabaria a qualquer momento. Apesar disso, sentia que fazia a coisa certa. E, por fim, permaneceu firme.
“Não” pigarreou João, desviando o rosto para o gramado e procurando equilibrar-se por sua própria conta. Sua voz era serena e lúcida, como se não estivesse tão embriagado como parecia. “Eu me lembro” Babí sabia que devia correr o olhar do rosto dele, contudo não sentiu que podia. Não queria. A boca de João mostrava-se intacta, chamativa. Pequena e demarcada. Os lábios, rosados, simétricos, desenhados. “Ele está morto porque é um bêbado estúpido” sibilou o garoto entre os dentes.
Sua voz ecoou forte no entorno dos dois, como um furacão de sentimentos acumulados. O tempo pareceu congelar. “Sinto muito” Babí sussurrou, (mas, tão baixo que nem ela mesma não conseguiu ouvir).
E então veio o silêncio. Um silêncio cortante e cheio de significados mal explicados, doloridos, compartilhados. Olhares perdidos, escuros, reflexivos.  Depois, a brisa quente e passageira de verão, atingiu-lhes como flechas afiadas que abriam ainda mais as feridas inutilmente escondidas.
“Por que você andou chorando?” perguntou João de supetão, tentando desviar o assunto. Tinha um meio sorriso vago, inexpressivo. Não manteve nenhum contato visual. Bárbara, atônita, corou. Era verdade. Ela tinha chorado… tinha tido sensações ruins, tinha fugido da festa. E, ao vê-lo, como em um passe de mágica, esqueceu-se dos seus problemas para pensar nos dele. Esqueceu-se de si mesma.
Amor, algo insano.
“Ahm, eu…” o som de sua voz perdeu-se no ar. Não sabia o que dizer, se queria dizer, por onde começar. Já podia sentir o coração pulsar na boca do estômago. João tinha covinhas lindas nas bochechas. Singulares, perfeitas, incrivelmente bem-dispostas. Eram a marca registrada de seus sorrisos. Babí se lembrava bem de seus sorrisos. Na verdade, ela se lembrava de cada momento que haviam dividido desde a primeira vez que tinham se trombado, no longo corredor do prédio do ensino fundamental. Momentos felizes, tristes, difíceis, divertidos. Milhares de momentos únicos, deles. Mesmo assim não sabia ao certo quando seus sentimentos haviam mudado, se intensificado, ultrapassado a amizade. Não fora um processo consciente. E em um dia pacato e comum, entre um espirro e telefonemas preocupados, finalmente dera-se conta. “…eu acho que, er, minha… maquiagem, hm, me deu… alergia”. Disse, enquanto escorregava o corpo para frente, apoiando-se na mureta do coreto entre os pilares, ficando bem ao lado de João. Estava praticamente sem fôlego.
“Mentirosa” acusou o menino, capturando suas expressões com os olhos enigmáticos. A voz dele era desafiadora e convicta. Estavam mais próximos que de costume. Babí concentrava-se em manter a respiração estável. Ele riu sem humor. “Uma mentirosa e um bêbado. Bela dupla que somos”.
Primeiro, Babí sentiu raiva do comentário. Raiva dele, de si própria. Depois, ela chorou. As lágrimas quentes voltaram a brotar no canto dos olhos, como se nunca tivessem cessado e simplesmente começaram a cair. Poderiam ser muito mais, se João não fosse tão estúpido, se João olhasse para ela. Vê-lo sofrer era pior que sofrer por si só. Ela queria ajuda-lo, abraça-lo, cuidá-lo. Queria que ele se sentisse especial, que sentisse que tinha alguém no mundo para voltar. A bochecha tornou a molhar, o vestido tornou a molhar. Ele insistia em fazer tudo sozinho, como um garotinho teimoso. E por mais que se mostrasse, não a via como mulher.
A escuridão da noite quente tomava conta dos dois. João se moveu, aumentando a proximidade entre eles. Babí recuou, defendendo-se dos próprios anseios. “O que está acontecendo aqui?” Pensou a menina. Não sentia mais domínio pelo seu próprio corpo. Ele piscou algumas vezes, ela moveu os braços. Ele voltou a se aproximar e então ela permitiu. Ele tocou suas mãos e brincou com seus dedos. Ela se arrepiou, voltou a sentir o costumeiro cheiro de amaciante por trás do fedor do álcool. “Será possível…?” Questionava-se, apreensiva. Palavras pareciam impronunciáveis. A cada milésimo de segundo, o pânico se mostrava maior. Bárbara sentia o corpo todo formigar, dando indícios de dormência. “Não, ele só está muito bêbado”. Estavam a centímetros um do outro – o hálito quente de João já a alcançava. “Controle, controle, controle” A disputa entre sua cabeça e seu coração estava acirradíssima. “Se afaste, aja como sempre”, sua cabeça instruía. “Beija, beija”, torcia o coração. Beijá-lo seria loucura, ela desapareceria do universo depois, de tanta vergonha. Seria pior, muito pior. Era recíproco? Ele estava tão bêbado assim?
Porém, deixar de beijá-lo seria um crime.
Babi inclinou-se, João a seguiu. As mãos e braços se entenderam quase que em gestos automáticos. Babí tocou seus cabelos, João apoiou-se em sua cintura. Os corações batiam no mesmo ritmo, as bocas conduziam-se para o encaixe.
“Então é isso.” avisou, sorrindo. “Vou beijar você”
Os lábios se tocaram. As borboletas no estômago alçam vôo.

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