Capítulo
um
Efeitos
Colaterais, Tsurus e Girafas de Bexiga
Bárbara Lins sempre amou festas de quinze
anos. Sempre. Por toda a sua vida, tinha sonhado com o dia em que finalmente
completaria seu décimo quinto aniversário e usaria o vestido branco mais bonito
de todas as lojas de vestidos da cidade. Aproveitaria o dia de debutante na
companhia de seus amigos, dançaria valsa com seu príncipe encantado e faria um
loooongo discurso de agradecimento. Seria lembrada com louvores. Nesse dia, todos
a notariam de uma maneira especial.
Porém, quando a idade certa estava prestes
a bater em sua porta, a menina deu-se conta de que seus devaneios eram apenas fantasias
de um sonho distante. Os pais passavam por graves problemas financeiros e não
tinham condições de lhe proporcionar o que era tão almejado. Nem tinham carro
ou casa própria e, se não fosse por sua bolsa de estudos integral, tão pouco poderiam
pagar a mensalidade do colégio em que estudava. Quando a menina especulava a
respeito de festas, presentes ou viagens, a resposta que recebia era a mesma:
“Querida, precisamos cortar os gastos supérfluos”. Babí via o dia perfeito cada
vez mais distante de suas possibilidades. O que seus pais não entendiam é que
sua festa dos sonhos não era em gasto supérfluo. De jeito nenhum.
Fazendo jus aos estudos de Darwin, não
teve outra saída a não ser se adaptar. Aprendera gradativamente a bolar
desculpas convincentes aos amigos e aos cobradores de aluguel. Tinha um
cofrinho de economias no quarto, e nele acumulava o dinheiro que conseguia com
seus trabalhos informais. Assim, comprava o que julgava necessário para estar à
altura de quem pensava que devia ser. Se esforçava muuuito para lembrar os
horários de ônibus, mesmo com sua terrível memória a curto prazo, para conseguir
manter a discrição. Nos lugares que ia, era a primeira a chegar e a última a
sair, além de acostumar descer sempre um ponto antes, por garantia, para terminar
o percurso a pé. Sentia-se extremamente envergonhada pela posição social da
família.
O momento não foi dos melhores. Foi na
pista de dança, quando o barman gostoso balançou sua cabeça cheia de vodka de
um lado para o outro enquanto o DJ tocava Bad Romance da Gaga. Não tinha bebido
muito, algumas batidas talvez. Estava na festa dos sonhos, dos deuses, dos
luxos. Tudo era muito lindo. Seria perfeito se Barbara não soubesse que não era
a aniversariante. E nnunca seria. A aniversariante era Bia, sua melhor amiga.
Por que a amiga tinha tanto e outros como ela não tinham nada? Em meio àquela
gente, com luzes piscando e olhar embaçado, Babi sentiu-se constrangida,
envergonhada, triste, deprimida, amarga. Tudo junto. Como se aquele mundo não
fosse o mesmo mundo que ela vivia. Assim, enquanto a música tocava e as pessoas
se entrelaçavam umas nas outras dentro do salão, a menina se esquivou de
fininho pelos cantos, em direção à parte externa, se esforçando ao máximo para
que suas lágrimas não despencassem através das bochechas. “Mas que droga Babi” pensou. “Vai
borrar toda a merda da maquiagem”.
A passos largos e bambos, ela seguiu em
frente sem destino certo. Estava irritada consigo mesma por chorar. Seus pés
doíam mais do da última vez – e era por isso que raramente usava sapatos de
salto alto: quando usava, tinha que
lidar com aquela dor chata nos pés. Passou pela porta de entrada do buffet,
cruzou o laguinho. Não enxergava mais que borrões do asfalto pedregoso e desgastado.
A música aos poucos ficava para trás, ao tempo que tornava-se um emaranhado de ruídos
finos e recorrentes.
Quando avistou o coreto, não pensou duas
vezes: seria seu refúgio. Estava apagado, mas a luz da lua não o deixava no
breu completo. Era grande e muito bonito. Os pilares nitidamente faziam
referência a obras renascentistas, uma arquitetura refinada. Babí logo se
lembrou dele no álbum de fotos da amiga. Pensou como teria sido incrível usá-lo
como cenário de suas próprias fotos. E então sentiu mais e mais lágrimas
descerem pelo rosto, em um fluxo intenso e interminável. Mas, de repente, não
importava se elas caíam ou deixavam de cair. Não importava mais se elas borravam
a maquiagem. Simplesmente não importava. Nada mais importava no mundo para
Barbara Lins naquele momento. Isso porque ela nunca tiraria fotos em um coreto
ou dançaria valsa com um príncipe encantado. Ela nunca usaria o vestido mais
bonito dos vestidos. Nunca faria discursos, nunca seria notada. Nunca teria sua
festa dos sonhos.
Ouviu-se soluçar. Arrancou os sapatos. Viu
a bolha de sangue escancarada no calcanhar. Era enorme. Com certeza não
voltaria para a festa. Pelo menos, não calçada, não com o coração inteiro e não
sem algo para esconder a cara inchada. Prendeu os cabelos em um coque e ergueu
a barra do vestido. A escadaria não tinha muitos degraus. Enquanto subia, torcia
para que o coreto estivesse vazio. Não porque se incomodava que as pessoas lhe
vissem, mas para que pudesse estar realmente sozinha – sentia-se camuflada entre
as pessoas nas multidões.
Todavia, com a sorte que tinha, o lugar já
estava ocupado. Percebeu sua presença de súbito, assim que pôde contemplar o
coreto como um todo. Sentiu o coração na garganta no momento em que o viu, de
trajes sociais, encostado em um dos pilares mais distantes de si. Tinha achado
que sua situação não podia piorar. Mas podia, afinal. Se encontrava dificuldade
em suportar apenas uma de suas dores por vez, seria capaz de suportar duas,
simultaneamente? Desejou do mais profundo de seu ser que qualquer outra pessoa
estivesse ali. Qualquer uma.
“O que faz aqui?” Murmurou num impulso,
sem pensar no depois: o que faria, o que diria, como diria, como se explicaria,
com que entonação de voz. Estava tão vulnerável que não conseguiu ativar seu
alerta vermelho a tempo. Jogou toda a racionalidade para o espaço. Para sua surpresa,
o garoto continuou virado de costas, imóvel, com o terno mal colocado e o
cabelo bagunçado. Babí sabia que ele não gostava de terno, mas tal fato não
significava que não ficasse bem. Principalmente de costas, com seus ombros
magrelos e ossudos devidamente acomodados. “Não
pense nos ombros”. Advertiu a si mesma. Não podia acreditar no que lhe
acontecia.
Mesmo sabendo que não deveria, resolveu
tentar uma aproximação cautelosa – era fraca quando o assunto era ele. Logo que
o cheiro de álcool chegou às suas narinas, a menina entendeu.
“Você é burro ou o que?” bufou Babí,
irritada, colocando os sapatos no chão para que suas mãos ficassem livres. “Você
sabe que não pode com bebida, J” disse a menina, quando lhe tomou pelos braços
instáveis, forçando o corpo grande do amigo para trás. Queria girá-lo e fazê-lo
ficar de frente para si. Era difícil. Não sabia que alguém podia ser tão
pesado. “Você quer ficar que nem o seu pai?” murmurou acusatória – e logo em seguida
se arrependeu. Normalmente, Babí se policiava para não falar a respeito do pai
de João, principalmente quando ele bebia. Aquela era uma história triste de
ouvir – e sendo assim, presumia que era mais triste ainda fazer parte dela. Porém,
naquela noite, seus sentimentos estavam todos misturados, dançando pelo corpo. Ela
não sabia muito bem o que estava fazendo ou o porquê o destino havia lhe
enviado ali (justo ela!). Não costumava tocar nas mãos dele ou segurar seu
rosto, pois conhecia o efeito que desencadeava, mas lá estava ela, tocando e
segurando. Caloroso, com texturas engraçadas, era assim que seus dedos o liam. Mãos
pequenas e enrugadas, bochechas redondas demais. Não ousava chegar tão perto,
contemplá-lo por muito tempo. O corpo respondia com arrepios constrangedores, o
coração começava a cambalear. Eram inúteis as tentativas de ignorar seus
sentimentos aflorados.
Ele a fitou com os olhos entreabertos,
murchos. As pálpebras estavam tortas, torcidas para os lados. Babí notou que
tinha alguns fios de cabelo da franja grudados na testa, como quando jogava
futebol. As orelhas estavam suadas, melecadas e vermelhas. Do nariz escorria
sangue. “Meu pai tá morto, Ba” sussurrou, seco.
Ouvir tais palavras foi um tiro certeiro em
seu coração.
E então ela respirou profunda e lentamente
por alguns instantes.
“É.
Ele tá morto sim” balbuciou em resposta, com toda a coragem e força que
conseguiu reunir. Achava-se no dever de falar ao amigo o que precisava ouvir. “E
você quer que eu te lembre por que?” Seu tom de voz era duro e autoritário. Encararam-se.
Os olhos castanho-claros de João traziam um olhar estranho à tona, que Babí
nunca havia visto. Um olhar misturado: dor, surpresa, tristeza... admiração
talvez. A menina pensou que desabaria a qualquer momento. Apesar disso, sentia que
fazia a coisa certa. E, por fim, permaneceu firme.
“Não” pigarreou João, desviando o rosto
para o gramado e procurando equilibrar-se por sua própria conta. Sua voz era
serena e lúcida, como se não estivesse tão embriagado como parecia. “Eu me
lembro” Babí sabia que devia correr o olhar do rosto dele, contudo não sentiu
que podia. Não queria. A boca de João mostrava-se intacta, chamativa. Pequena e
demarcada. Os lábios, rosados, simétricos, desenhados. “Ele está morto porque é
um bêbado estúpido” sibilou o garoto entre os dentes.
Sua voz ecoou forte no entorno dos dois,
como um furacão de sentimentos acumulados. O tempo pareceu congelar. “Sinto
muito” Babí sussurrou, (mas, tão baixo que nem ela mesma não conseguiu ouvir).
E então veio o silêncio. Um silêncio
cortante e cheio de significados mal explicados, doloridos, compartilhados. Olhares
perdidos, escuros, reflexivos. Depois, a
brisa quente e passageira de verão, atingiu-lhes como flechas afiadas que
abriam ainda mais as feridas inutilmente escondidas.
“Por que você andou chorando?” perguntou
João de supetão, tentando desviar o assunto. Tinha um meio sorriso vago, inexpressivo.
Não manteve nenhum contato visual. Bárbara, atônita, corou. Era verdade. Ela
tinha chorado… tinha tido sensações ruins, tinha fugido da festa. E, ao vê-lo, como
em um passe de mágica, esqueceu-se dos seus problemas para pensar nos dele. Esqueceu-se
de si mesma.
Amor, algo insano.
“Ahm, eu…” o som de sua voz perdeu-se no
ar. Não sabia o que dizer, se queria dizer, por onde começar. Já podia sentir o
coração pulsar na boca do estômago. João tinha covinhas lindas nas bochechas. Singulares,
perfeitas, incrivelmente bem-dispostas. Eram a marca registrada de seus
sorrisos. Babí se lembrava bem de seus sorrisos. Na verdade, ela se lembrava de
cada momento que haviam dividido desde a primeira vez que tinham se trombado,
no longo corredor do prédio do ensino fundamental. Momentos felizes, tristes,
difíceis, divertidos. Milhares de momentos únicos, deles. Mesmo assim não sabia
ao certo quando seus sentimentos haviam mudado, se intensificado, ultrapassado
a amizade. Não fora um processo consciente. E em um dia pacato e comum, entre
um espirro e telefonemas preocupados, finalmente dera-se conta. “…eu acho que,
er, minha… maquiagem, hm, me deu… alergia”. Disse, enquanto escorregava o corpo
para frente, apoiando-se na mureta do coreto entre os pilares, ficando bem ao
lado de João. Estava praticamente sem fôlego.
“Mentirosa” acusou o menino, capturando
suas expressões com os olhos enigmáticos. A voz dele era desafiadora e convicta.
Estavam mais próximos que de costume. Babí concentrava-se em manter a
respiração estável. Ele riu sem humor. “Uma mentirosa e um bêbado. Bela dupla que
somos”.
Primeiro, Babí sentiu raiva do comentário.
Raiva dele, de si própria. Depois, ela chorou. As lágrimas quentes voltaram a
brotar no canto dos olhos, como se nunca tivessem cessado e simplesmente
começaram a cair. Poderiam ser muito mais, se João não fosse tão estúpido, se
João olhasse para ela. Vê-lo sofrer era pior que sofrer por si só. Ela queria ajuda-lo,
abraça-lo, cuidá-lo. Queria que ele se sentisse especial, que sentisse que
tinha alguém no mundo para voltar. A bochecha tornou a molhar, o vestido tornou
a molhar. Ele insistia em fazer tudo sozinho, como um garotinho teimoso. E por
mais que se mostrasse, não a via como mulher.
A escuridão da noite quente tomava conta
dos dois. João se moveu, aumentando a proximidade entre eles. Babí recuou,
defendendo-se dos próprios anseios. “O que
está acontecendo aqui?” Pensou a menina. Não sentia mais domínio pelo seu
próprio corpo. Ele piscou algumas vezes, ela moveu os braços. Ele voltou a se
aproximar e então ela permitiu. Ele tocou suas mãos e brincou com seus dedos. Ela
se arrepiou, voltou a sentir o costumeiro cheiro de amaciante por trás do fedor
do álcool. “Será possível…?” Questionava-se,
apreensiva. Palavras pareciam impronunciáveis. A cada milésimo de segundo, o
pânico se mostrava maior. Bárbara sentia o corpo todo formigar, dando indícios
de dormência. “Não, ele só está muito
bêbado”. Estavam a centímetros um do outro – o hálito quente de João já a
alcançava. “Controle, controle, controle”
A disputa entre sua cabeça e seu coração estava acirradíssima. “Se afaste, aja como sempre”, sua cabeça
instruía. “Beija, beija”, torcia o
coração. Beijá-lo seria loucura, ela desapareceria do universo depois, de tanta
vergonha. Seria pior, muito pior. Era recíproco? Ele estava tão bêbado assim?
Porém, deixar de beijá-lo seria um crime.
Babi inclinou-se, João a seguiu. As mãos e
braços se entenderam quase que em gestos automáticos. Babí tocou seus cabelos,
João apoiou-se em sua cintura. Os corações batiam no mesmo ritmo, as bocas conduziam-se
para o encaixe.
“Então é isso.” avisou, sorrindo. “Vou
beijar você”
Os lábios se tocaram.
As borboletas no estômago alçam vôo.
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