sábado, 19 de dezembro de 2015

Reticências#1(?)

Capítulo um
 “A gente não podia ser um casal normal?”
Estava escuro. Eu não estava enxergando nada. Só conseguia sentir sua mão grande e gelada tentando não enroscar o pano no meu cabelo. Era muito gentil, muito cuidadoso também. Eu lembro nitidamente a primeira vez que nossas mãos se tocaram, naquela festa de ano novo. Nossos melhores amigos tinham nos arrastado. O clima na minha casa estava terrível por causa dos problemas financeiros. Ninguém queria pensar em comemorações de fim de ano. Além disso, eu tinha acabado de levar um pé na bunda de um relacionamento de cinco anos. Eu não estava exatamente triste. Até então, acho que estava anestesiada. Meu ex se exibia com a nova namorada nas redes sociais. Eu pensava que a qualquer momento acordaria e tudo estaria bem novamente. Mas não acontecia assim. Fiquei bêbada naquela noite, completamente bêbada. Era a primeira vez que eu bebia daquele jeito desde o colégio. Achei que ia morrer. Mas não tava nem ai. Por algum motivo, ele e eu tínhamos passado horas conversando. Horas que pareceram minutos. Sem aquela sensação de pesar, de relacionamento desgastado. Eu ria tanto que meu estômago chegava a tremer. Não conseguia me lembrar da ultima vez que havia rido assim. Uma pessoa diferente. Uma pessoa que não era o Mateus. Foi com ele que eu finalmente percebi. Havia terminado, de fato. Ele me puxou pela mão. Seu toque era firme, seguro, descontraído, sem pretensões. Eu não estava acostumada a mãos grandes, nem geladas. Meu ex-namorado tinha mãos pequenas, desproporcionais e quentes. Sua pele era macia. Dançamos. A noite era única, era nossa. O céu brilhava só pra gente. Existimos juntos, pela primeira vez. Na manhã seguinte, seu rosto não passava de um borrão. Apesar disso, havia guardado seu toque no meu coração.
 “Amor, entre o que a gente é e o que a gente podia ser há um abismo bem grande”. Murmurou. Sua voz ligeira era o único som que eu podia ouvir. Era um som melodioso, aveludado, pausado, que arrepiava. Pairava sobre minhas orelhas atentas, em um vai e vem, como ondas do mar. Sons singulares que ressoam infinitamente: belezas que apenas a madrugada possui.
 “Frases bonitas fora de hora, sempre”. Digo, sorrindo. Não posso ver sua boca, mas sei que também sorri. Aquele meio sorriso que tem de covinhas fundas e que me faz querer sorrir também. O jeito filosófico dramático de suas colocações sempre me causando admiração. Admiração pura, daquelas que a gente só admira. Aleatório, exótico, banal.  É dele. E por ser dele, eu gosto. Eu gosto dele por inteiro, sem tirar nem por. “ Típico de…”.
“Mim” Sagaz. Como suas sacadas inteligentes e bem estruturadas no grupo de amigos. Seu jeito despojado, solto, livre. Esse jeito que me faz transbordar. Esse jeito que me faz querer contemplá-lo. É platônico, inteligível. Sinto-o retirar as mãos do meu cabelo e tocar na parte móvel da cadeira. Finalmente termina de arrumar seu nó cego. Sua respiração estuda meu pescoço.
“Pois é, lide com isso” sussurra, no pé da minha orelha. Meu corpo arrepia. Ele sabe os pontos fracos. Orelha, pescoço, costas. Maldoso. Quando competimos, ele joga pra ganhar. Mas é diferente. Não quer ganhar de mim. Ele quer me ganhar para ele. Todas às vezes, é para ele. E quando ele ganha, é como se nós dois ganhássemos. Faz-me sentir única no mundo. Tal qual o pequeno príncipe deveria ter feito com sua Rosa e não fez. Ele faz. Ele também é único no mundo. “Ninguém mandou se apaixonar por mim”. Impulsiona a cadeira com destreza e ela gira. Sinto-o em minha frente.
“Eu amo ser apaixonada por você” declaro. Como um sopro forte e delicado, minhas palavras ecoam. Eu sinto orgulho de tê-las proferido. Não tenho dúvidas, não hesito. Sei que, naquele instante, elas são minha única verdade. “Apesar das ideias malucas que eu não entendo”. Jogo. Eu entendia. Perfeitamente. Ele sabia, mas fingia não saber. Eu só queria ouvir de novo e de novo. Ele queria falar. De novo e de novo.
“Eu quero você de todos os jeitos possíveis, em todas as situações. Não vou te trocar por sistemas elétricos ou geradores, prometo”. Meu coração bate acelerado. Ele me ama. Ama de verdade. Ele me ama como eu o amo, com a mesma potência. Estamos em sintonia. Com Mateus era um amor solitário, de mão única. Era eu me dando demais, recebendo de menos. Eu esperando algo que não podia ser, recebendo migalhas, sufocando. Eu indo e voltando, desligando e ligando o interruptor, repetidas vezes. “Posso estudar fisiologia enquanto estou com você”. Ousado, simplista. Sinto minhas bochechas corarem. Estão queimando.
“Você é tão estranho” sussurro. Sua boca está a uma distância segura de mim. O garoto que senta com os joelhos na altura do queixo toda vez que está impaciente. Aquele que faz dobraduras de quadrados quando está entediado e que, com vinte e dois anos nas costas, ainda brinca de adivinhar o formato das nuvens no céu, enquanto me oferece sorvete. Aquele que sabe como deixar qualquer pessoa confortável, em qualquer lugar. Aquele que é ele mesmo, em qualquer lugar. Aquele que não se importa com os outros, porque os outros não fazem diferença.
“Você diz isso o tempo todo. É vicio?” Sibila. Sua boca se aproxima um pouco. Sinto seu hálito quente. Tem cheiro de bala de canela. A bala que meu avô comprava na feira para mim quando eu era menor.
“Só digo por que é verdade” minha voz é um suspiro.
“É verdade e você adora” sussurra.
“Talvez” sussurro de volta. Ele toca o meu lábio lentamente, depois morde.
“Eu tenho certeza que sim” diz. Então suas mãos tocam meus cabelos com força. Ele me beija. Meio salgado, meio doce, com aquele gosto que é dele. Devagar, rápido. Em seu próprio ritmo peculiar, intercalado. Sem medo, porque quis, porque quer, como quer. Seguro. Espontâneo, natural. Intenso. Apesar de vendada, consigo ver as estrelas que sorriam para nós naquele dia, na roda gigante. Bem lá no topo. Sem medo. Livre, leve, solto, puro. Sem medo. Inesperado, inquietante, impaciente, agitado.
Sem medo.

Pleno. 

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