quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Dona Cocó, quebra-cabeças e o garoto que voltava (por que pedagogia, Ab?)

Quando entrei pela primeira vez na escola primária que minha mãe leciona atualmente, dei de cara com a Dona Cocó. Ela estava bem no meio do pátio, remexendo-se em sua dança de ave, enquanto esperava que alguma migalha caísse do café das mãos das crianças. Era redonda e alaranjada, bastante desengonçada. Suas pernas foram, de longe, o que mais me chamaram atenção, por serem finas e ágeis. Fiquei encanada. Nunca, em minha minúscula experiência de vida até aquele momento tinha olhado tão de perto para uma galinha (viva). Sentei-me no refeitório para interagir. Era como todos os outros. Apesar disso, ninguém parecia compartilhar do meu sentimento de estranheza. 

As crianças montavam um quebra-cabeças de papel enquanto lhes era distribuído o certificado da olimpíada de astronomia que haviam participado. Anos depois, de dentro da sala de aula da minha mãe, eu era uma espectadora diferente. Minhas estranhezas haviam mudado, apesar de continuarem existindo. Eu havia mudado. Observava tudo com atenção. Cada movimento proferido por uma criança era um movimento singular e único em sua complexidade. A sala de aula agora me parecia muito mais rica que o pátio. Rica no sentido de rara, preciosa, diversa. Ao mesmo tempo, era frágil como porcelana. Um passo em falso e seria o fim, quebraria em pedaços tão miúdos que provavelmente um bom reparo seria impensável. Equilibrava-se entre suas potencialidades utópicas e limitações concretas. 
Eu era a última da fileira da janela. 
Nada de ventilador, tão pouco ar condicionado. Era o vento vindo das janelas abertas ou nada. O calor era insuportável. Carteiras, usadas, em mal estado de conservação. Umas mais altas que outras, irregulares. Algumas empilhadas ao fundo, quebradas. A lousa, descascada nas bordas, mostrava linhas quase invisíveis, pois com o tempo haviam se tornadas fracas demais. Pouco giz, nenhum apagador. O armário com portas sem tranca, os murais com desenhos em papéis almaço, tocos de lápis. Mochilas rasgadas, pés descalços, roupas sujas. Uma hora de ônibus ou mais pra ir e para voltar. Era um quebra-cabeça dos grandes. Ainda assim, ele permanecia sendo montado, dia após dia.
A questão da estruturação educacional muito me incomodou durante meus anos escolares, ainda que de forma parcialmente consciente. Um YouTuber de que sou muito fã, ao falar a respeito de provas vestibulares em um de seus vídeos, disse uma frase triste e verdadeira: "Às vezes, a gente está tão preocupado em, por exemplo, passar no enem, que a gente esquece de pensar que o problema é que não há vagas o suficiente para todo mundo" - Sinicio, César (https://youtu.be/JoGa-Al15RY). Em um boom histérico, a realidade me dava socos no estômago. 
Por que?
Por que não tinha vagas para todos?
Por que era tão igual, mas tão diferente
Algo dentro de mim gritava alto. 
Quando? 
Quando eu havia deixado de ser um deles? 
Quando aquele abismo havia surgido? 
O monstro da impotência. 
No mesmo vídeo de César, também fora colocado por ele que ninguém era determinado por suas fragmentações. Será que contaram isso para todo mundo? 

As crianças colavam o quebra-cabeça montado em outro papel. A missão então era escrever um pequeno texto sobre a figura que tinha sido formada por eles. A maior parte da turma executava a tarefa com maestria. Mas não ele. Ele era baixinho, usava óculos fundos que tentavam esconder o estrabismo, tinha cabelos crespos e pretos. Eu ouvia sempre minha mãe reclamar do seu desempenho quando corrigia trabalhos em casa, ainda que o apontasse como um dos mais inteligentes da turma. Ele brincava com a régua e com a cola, numa espécie de caça selvagem. Parecia estar em qualquer lugar, menos na escola. Eu podia entendê-lo porque também o fazia com meus lápis, às vezes, nas aulas de matemática quando tinha sua idade (até hoje).
As leituras começaram. Minha mãe já sabia que ele não havia terminado. Mesmo assim, pediu para que lesse. Ele não disse nada. Não era de falar muito, ainda mais quando não havia algo positivo a dizer. Minha mãe o pressionou, rígida. Assustei-me com sua firmeza: poucas vezes havia se colocado daquela forma, em casa. O garoto permaneceu quieto, imóvel. Minha mãe continuou cobrando respostas. O silêncio entre uma bronca e outra criava um clima de tensão. Os outros alunos assistiam, como eu, apreensivos. O choro fino e estridente tomou todos os cantos da sala. Os ombros dele relaxaram. Minha mãe se aproximou. Seu rosto estava vermelho. Sinal de grande irritação. 
"Se você não fizer a atividade, não vai para o parque depois" sibilou. 
Durante as horas que se seguiram, ele não fez nem aquela, nem as outras atividades propostas.

Hora do recreio, sala dos professores. Alguém levara um bolo de chocolate muito melhor que meu pacote de clube social. Minha mãe conversava com as outras professoras. Eu procurava com os olhos algum papel ou pote em que pudesse cortar um pedaço do bolo. A conversa me incomodava.
"Minha turma estava calma hoje" ela dizia. "Menos ele, é claro".
"Eu não sei como você consegue Adriana, francamente" uma delas murmurou. "Ele não parava um minuto na minha sala ano passado, também não falava" Havíamos ouvido alguns gritos altos dessa mesma professora durante as primeiras aulas. Papel encontrado, cortei um pedaço de bolo e puxei uma cadeira ao lado de minha mãe.
"Eu me lembro quando ele ficava debaixo da mesa do refeitório, no primeiro ano" disse outra. 
"Eu tenho vontade de sumir, às vezes" afirmou minha mãe. "Tento dar o meu melhor".
Uma grande e doce mordida do bolo era empurrada por garganta abaixo.
Melhor? 

"Mãe, você não acha que foi dura demais? Digo, com o garoto" Caminhávamos sós pelo estreito e longo corredor das salas. Ela esboçou um pequeno sorriso confiante no canto da boca.
"O olhar de fora é muito limitado e superficial, Bia" Disse minha mãe em uma simples colocação sábia. Típico dela, soltar essas frases impactantes nos momentos certos. "Tem coisa que a gente aprende na prática, com os anos. Deixe a prepotência de lado e pare de olhar a situação recortada".
Quando entramos na sala, lá estava ele, com a cola aberta nas mãos e as peças do quebra-cabeça viradas para baixo. O que? Foi o que pensei. Minha mãe pareceu se divertir com a minha expressão abobalhada. Estava só. Concentrado. Calmo. Quando nos percebeu, ergueu a cabeça.
"O que está fazendo aqui na hora do intervalo?" minha mãe perguntou, andando até o armário a procura de alguns trabalhos.
"Colando". Ele respondeu. Buguei, imóvel.
"Por que?" Perguntou minha mãe, outra vez.
Nenhuma resposta.
"Por que você não ajuda ele?" Ofertou minha mãe, que andava de um lado para o outro com caixas de desenhos. Assenti positivamente. Caminhei até sua carteira. Havia parado entre a porta e o corredor até dado momento.
Ele me ofereceu uma peça. Enquanto colávamos, a figura tomava forma. A catarse vinha junto dela, progressivamente. Demorei um pouco a entender (e aceitar) que minha percepção era só minha - foi em um trabalho esquisito de Processos Psicológicos Básicos que o comecei a fazer, verdadeiramente - e aquilo pareceu fazer todo o sentido enquanto eu colava o quebra-cabeças com ele. O que eu via era apenas a ponta do iceberg.
"Muito bom" elogiei.
A figura formada era uma galinha. 

Hora do parque - se é que dois balanços, um trepa-trepa e uma caixa de areia podem ser chamados de parque. Minha mãe e eu sentadas na mureta perto do bebedouro. Ele no topo do trepa-trepa. Ela corrigindo as cartinhas do papai noel dos alunos. Eu... bom, eu ali digerindo.
"Mãe"
"Que?"
"Você sabia que ele estava lá?"
Ela riu.
"Ele volta sempre no intervalo"
Ri de volta.
"Eu não entendo direito" digo.
"É o contrato"
"Que contrato?"
"No começo do ano ele quase não falava ou ficava na sala" Começou. "Não sabia direito pegar no lápis, ficava deitado de baixo da mesa do refeitório. Era uma loucura. Com quatro anos, os pais dele se separaram e ele passou a morar com os avós. Os avós são idosos e um deles está doente.Não tem muita atenção. Ele passa o tempo todo sozinho, com o vídeo game. A mãe o visita, às vezes, com um presente" Arrumou a gola da camiseta. "Quando o vi na minha turma, fiquei um pouco receosa, mas sabia que seria bom. Ser professor muitas vezes é isso. É ter uma relação misturada, de amor e ódio. Quase de simbiose. Professor e aluno traçam um contrato mental inconsciente a respeito de papéis a partir do momento que o ano escolar se inicia. O professor do primário é a primeira grande referência da criança depois da família. No caso dele, as referências são extremamente divergentes de mim, e muito omissas. Então eu preciso impor os limites que não receberam de casa, porque eu me importo. Isso machuca e ao mesmo tempo amadurece".
Achei ter lido algo do gênero de Freud para a aula de Psicologia do Desenvolvimento e Teorias da Aprendizagem, algo a respeito da transferência do Complexo de Édipo para o professor, mas não me lembrei com certeza. Ainda tenho muito o que estudar. Flashbacks a respeito de meus professores. Poucos se importaram verdadeiramente.
"É meio Freud". Sugeri.
"Sim. E é meio Skinner também" Minha mãe devolveu. "Na verdade, pode ser o que você quiser. Depende o jeito que você olha. O importante é que você enxergue o que realmente importa."
Em uma das minhas últimas sessões de Coaching, a Amanda me trouxe uma ferramenta chamada Ensaio Dramático e Feedback. Consistia no seguinte: Eu fechava os olhos e imaginava a situação que ela me colocava e, em alguns momentos, tinha que tomar decisões baseadas em duas opções de resposta que ela me oferecia. Lembro-me bem de que em uma das histórias que compomos juntas, eu era a regente de uma orquestra. Todos os membros da orquestra amavam tocar seus instrumentos e tinham como um grande sonho ganharem um concurso que a cidade propunha. O problema era que tínhamos que executar uma peça seguindo certas regras do concurso que não me agradavam (na época estava em uma crise de subordinação, risos. Não entrarei em detalhes). O não comprimento das regras que me incomodavam, portanto, era algo que eu precisava abrir mão para que o sonho de toda a minha equipe fosse realizado. Eu precisava dar o meu melhor - e tirar deles, o melhor de cada um. Lembro-me de não ter cedido às regras porque feriria meus pensamentos supostamente altruístas - assim como havia julgado a postura da minha mãe em sala de aula. Nosso espetáculo, porém, foi um fracasso. Vendo meus músicos tristes, eu também fracassei. Não foi nada altruísta. Não dei o que eles precisavam por não ver o que eles precisavam. A experiência, apesar de fictícia, me incomodou muito.
No ultimo semestre de 2015, matriculei-me em um cursinho pré-vestibular enquanto assistia aulas no primeiro ano de psicologia. Foram meses sensacionais, de extrema autonomia e liberdade de escolha, mesmo que cansativos. Finalmente me sentia responsável em fazer algo por desejo meu, e somente meu. Minha experiência no último ano do ensino médio havia sido conturbada. Em 2014 meus sentimentos mais intensos chegaram ao limite de forma dura e gradual, entre manifestações estudantis e decepções projetivas. Por que é que eu estava protestando? Hoje sei que não era pela volta do projeto integração. Contra quem eu estava protestando? Com certeza não era contra meu diretor carrasco. Também em 2015, tive a oportunidade de fazer estágio em uma instituição pública que recebia deficientes, com uma psicóloga e tudo mais. Enquanto eu estive lá dentro, pude ver o quanto estava errada em alguns desses aspectos que citei. Observar certas atitudes perante aos clientes do instituto, fez-me, de certa forma, corrigir mentalmente meus "enganos altruístas". Notei que nem sempre os profissionais enxergavam o que de fato era necessário enxergar ou faziam o que precisava ser feito. Será que tinha sido assim comigo? Desde então, é quase que uma regra mental perguntar-me: isso é proveitoso em relação ao que realmente importa? O ponto em que quero chegar é que o sistema educacional vigente muitas vezes esquece que o que é mais importante: os alunos. Ver minha mãe ter tanta consciência disso ao se relacionar com o garoto que voltava me fez pensar e sentir o quanto o se importar é essencial. Contudo, hoje vejo o quão enraizado é nosso sistema e que de nada me adiantará essa repulsa por ele se não conseguir transformar esse sentimento em um motor. Apesar do curso de psicologia ter me trazido a incrível ideologia de SummerHill para meus projetos e desejos futuros, sei que precisarei pensar e me utilizar de recursos mais palpáveis (ou seja, os poucos recursos oferecidos pelo sistema educacional vigente) até que tenha estudo, experiência, maturidade e requisitos suficientes para me emancipar
Por que pedagogia, Ab?
Eu não quero que esse abismo se alargue mais e mais. Porque quero entender a naturalidade de olhar para uma galinha alaranjada no meio de um pátio e mesmo tão distante, ainda assim estarei perto. Eu quero que as diferenças construam e unam, que sejam vistas com amor. Se tem muita gente que não se importa por ai, eu me importo. Eu sofri durante muito tempo por não entender o que, de fato, me angustiava. Como um quebra cabeças deixado à merce para ser montado mais tarde, minhas ideias nebulosas flutuavam sem data nem rumo de um canto para outro em minha mente. Por sorte, meu diário atuou como estimulador de término de quebra-cabeças. Meus escritos me proporcionaram descrições de sentimentos e pensamentos dos quais eu nunca seria capaz de retomar sozinha, com a mentalidade molesta da juventude. Deixar quebra-cabeças mentais por fazer, portanto, talvez seja uma boa prática de crescimento, mesmo que árduas, às vezes. Estão nos garotos que voltam, a peça de encaixe perfeita para o fim de antigos quebra-cabeças como os de dona Cocó. Neles também estão outras peças embaralhadas, de quebra-cabeças a serem solucionados no futuro.
Reverências à querida Práxis, de Paulo Freire. 
Um beijão no coração.
~Ab 

Ilustre imagem de uma provável descendente de Dona Cocó, acompanhada de sua nata elegância de fuga (sim, ela estava fugindo de mim)

2 comentários:

  1. Que lindo, AB!! Nossa, seu texto me fez pensar muito e acredito que vai ser fonte de reflexão por mais alguns dias. Quando você falou dos conselhos da sua mãe, talvez eu tenha tido a mesma sensação de surpresa que você teve no momento em que o ouviu. A história da galinha surgindo no início para amarrar as pontas no final, realmente muito simbólico! Identifiquei-me com muitas dessas reflexões e encontrei nelas coisas novas para basear as minhas próximas. Saber da existência de bons profissionais que se importam de verdade, como a sua mãe, e também a vontade de nos tornarmos esses bons profissionais do futuro faz com que as dificuldades se tornem muito mais desafiadoras do que assustadoras.

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  2. Nossa, pensa numa pessoa que escreveu um texto que tava sendo formado na minha vida há tipo... um ano? UHAUSHUASH Espero que um dia as pessoas possam pensar mais sobre a importância do sistema educacional, valorizar e capacitar mais os profissionais.. Quanto a nós, fiquemos atentas aos estímulos galinhais por ai UHASUHASU

    Ps. Minha mãe é genial!

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