quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

A viagem de Chihiro: os Deuses

Na jornada de Chihiro, ela se depara com dois clientes Deuses muito interessantes na casa de banho. O primeiro deles é um Deus Fedido, que nenhum funcionário da casa de banho se atreve a chegar perto e que por isso termina nas mãos de Chihiro. Ela é a responsável em levá-lo até a maior banheira do estabelecimento, uma banheira para clientes muito difíceis. Chihiro faz como orientada: oferece ao cliente a melhor "chuveirada" de ervas do estabelecimento. Ainda assim, a melhor das "chuveiradas" de ervas parece não ser o suficiente para limpar toda a sujeira do Deus Fedido. Então Chihiro tenta novamente, e, acidentalmente percebe uma espécie de "espinho" no corpo do espírito - o que aconteceria se puxasse? 
A retirada do espinho faz com que toda a sujeira do Deus Fedido saia em forma de lixo. Tem restos de eletrodomésticos e até uma bicicleta, muito lixo mesmo. Por baixo daquela montanha de lixo, o Deus que encontramos é uma pequena caveira azul, que agradece grandemente a Chihiro com um encantamento em forma de comida, que será cura posteriormente tanto para Haku quanto para outro Deus cliente, No Face. 
Somos como esse Deus Fedido, às vezes. Temos costume de guardar nosso lixo dentro de nós, ao invés de jogarmos ele fora. Ou agimos como lata de lixo de outras pessoas, permitindo que despejem em nós tudo de ruim que desejam. Lixo é fedido. E vai piorando no seu fedor a cada dia que passa. Todo esse lixo fica guardado e vai machucando, até que se crie um espinho e que alguém venha e retire com força, como fez a Chihiro. Nenhuma água resolveu a situação, foi necessário puxar o espinho e se livrar do lixo. Acabamos por parecermos muito maiores e mais pesados do que somos também. No fim das contas, o cliente era pequeno e se tornava pesado pelo lixo que carregava. 
O segundo cliente é um dos meus personagens favoritos de animação de todos os tempos. No face. Ele aparece aos pouquinhos, em várias cenas, para a Chihiro. Na cena da ponte, ela fica com medo dele. Posteriormente, na cena da chuva, ela sente pena dele. No Face não fala, o que o torna bastante misterioso até que compreendamos quem ele realmente é. E o que ele é? Um espírito carente, voraz. Ele deseja desesperadamente ter atenção genuína de alguém, mas tem uma crença de que tudo o que existe é pago, de alguma forma. Então ele faz cópias de coisas valiosas (como o ouro) a partir de barro, para comprar quem está a venda. E quando compra, engole a pessoa, literal e metaforicamente, se apropriando de tudo o que é dela. Quando se apresenta como cliente, todos o servem, pois ele é "um cliente generoso". Todos ficam muito empolgados com o que podem ganhar de No Face. Mas não Chihiro! Ela não está interessada no que No Face tem e não aceita dele nada além do que precisa. Chihiro também não está interessada em uma amizade unilateral, rápida, em que apenas recebe enquanto No Face dá (o que é extremamente irônico, porque ele dá justamente para receber, e não gratuitamente!). No Face entra em parafuso quando Chihiro se mostra interessada por quem ele realmente é, de uma maneira genuína. Quando finalmente entende que tem coisas que não pode comprar, depois de tentar de todas as formas, inclusive através da violência, ele se abre à construção de uma amizade com Chihiro. O que eu acho mais interessante é como o personagem se torna cauteloso - ele parece não acreditar que Chihiro dá pra ele algo tão lindo e precioso como uma amizade gratuitamente. Isso aparece no trem, por exemplo, quando No Face segue Chihiro mas espera que ela o chame para sentar ao seu lado. 
No Face representa uma sede de algo. Algumas pessoas lidam com o vazio existencial ficando tristes ou deprimidas. Outras, tentando preencher o vazio com tudo o que puderem. Às vezes, ambas coisas. 

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